Senhores Acadêmicos,
I
“Eis uma pessoa quase sobrenatural... não podia
defini-lo melhor já que se move e fala constantemente.
É monstruosamente alto e magro... um ar cavaleiresco de
D. Quixote, qualquer coisa de apostólico... sempre transbordante
de vida e sempre a contar histórias interessantes...”
Dá para pensar ser um desenho de Marco Maciel, mas não
é. Trata-se de Bernard Shaw, visto por Bertold Brecht.
Depois de Brecht, Mario Vargas Llosa principia A guerra do fim
do mundo, a saga de Canudos, com esta frase: “O homem era
alto e tão magro que parecia sempre de perfil”.
Não parece Marco Maciel?
É que Marco Maciel é magro como relíquia
de sacrário. Magro e alto.
O novo acadêmico chega à Academia Brasileira de Letras,
alto e magro, mas não de perfil. Entra de frente, sob o
pálio de valores fundamentais à convivência
em nossa Casa: brasilidade, serviços à Cultura,
produção intelectual, honradez irretocável,
grande vida de político.
Ressalto, desde logo, a sua vertente de político, recordando
Carnelutti, uma das leituras indispensáveis dos nossos
tempos da Faculdade de Direito, que disse assim: “Admiro
os políticos porque escolheram como profissão conviver
com gente”.
Não causaria nenhum mal se este fosse o seu único
título. Aqui, nunca deixamos de ter a grande cota de políticos.
Todos, como no seu caso, de densa vida dedicada às Letras.
A Política é a sua vocação. Jorge
Semprun conta que na admissão aos horrores de Bunchenwald
indagava-se da profissão, mas profissão no sentido
burocrático de produzir algo material para o campo de concentração.
Quando disse: “Sou filósofo”, a reação
foi braba. Isto não é profissão, rebateu
a voz de censura. Retrucou Semprun: “Pode não ser
profissão, mas é vocação”.
No caso de Marco Maciel poderia proclamar em nosso pórtico
compromissos com a vida pública como a sua grande vocação.
Seria bem aceito. A Academia não é política
mas não é apolítica, nem politófoba.
Esta instituição estaria desinteressada dela própria
se estivesse desinteressada do destino da Pátria. A Academia
é um espaço de liberdade e convívio. E de
solidariedade. Tanto que, passada a eleição, queimadas
as cédulas, todos se proclamam eleitos por unanimidade.
É da tradição. Dizemo-lo alto e bom som.
Aqui, só se fala baixinho quando a gente escreve. Aí
sim, a gente fala baixinho.
Como a modéstia é título que lhe cai muito
bem, sinta-se confortável. Deste ambão não
toleramos exibicionismos mas estimamos testemunhos de humildade,
naquela mesma moldura doutrinada na Sétima Regra de S.
Bento, que ouvimos dos monges, nos serros libertários da
nossa Olinda, Olindíssima.
Se há cidades orais, Lisboa, do fado; Buenos Aires, do
tango; o Rio, do samba; o Recife e Olinda são do frevo.
Ao lado dessas oralidades musicais, nós sempre ouvimos
ali a oralidade cívica das idéias libertárias.
Senhoras,
Senhores:
Grande entre nós, ninguém. Grande é a Academia.
Gosto de contar e vou contar novamente.
Quando esse suave e convergente homem público, esse poeta
que parece vem sendo superado pelo romancista e pelo cronista,
nosso José Sarney foi eleito para a Academia, teve o cuidado,
neto carinhoso, de avisar ao avô, lá nas lonjuras
maranhenses. O velho chamou o fogueteiro e deu-lhe ordem: solte
uma dúzia de rojões. Juntou gente à porta,
naquela ruazinha da cidade de Pinheiro, a indagar:
“Seu Assuero, que comemoração é essa?”
E ele:
“Meu neto José foi eleito para a Academia”.
E todo mundo:
“O que é que é Academia?”
Assuero ensinou:
“Não sei. Só sei que é coisa grande.”
Está explicado. Só a Academia é grande.
Reconheço no confrade hoje empossado o apetite preferencial
pela ação pública, até mesmo porque
do outro apetite não há nada a se registrar. Esta
não é uma gloríola. Procede alardear-lhe
vitórias, tenacidade, noites indormidas, auxiliares exaustos
e desnutridos, modernidade no jeito de administrar, propostas
bem maturadas. Tudo misturado adequadamente.
Bergson lembra que o intelectual na política realiza-se
em homem completo, aliando o pensamento à ação
e Max Weber, como o próprio Marco Maciel acabou de lembrar,
arremata que a Política exige paixão, senso de responsabilidade
e senso de proporção. Bergson e Weber sobram em
Marco Maciel.
A leitura dos discursos, conferências e livros que nos oferece
mostra a sua superfície e o seu símbolo, a ética.
Marco-Aurélio de Alcântara, há poucos dias,
aplicava-lhe, com propriedade, o conceito do ensaísta português
Luís Bliroco, constante de livro recentíssimo: “Política
não se faz sem pessoas, mas as pessoas de nada valem em
Política se não se batem por idéias”.
Com isto não quero dizer que Marco Maciel descarte o pragmático.
Isto, nunca.
São clássicos dois bordões das suas conversas:
“Quem tem prazo não tem pressa”; “Fique
atento, pode acontecer tudo, inclusive nada”.
Com tiradas desse tipo o novo acadêmico alinha-se a Machado
de Assis. O Bruxo sentenciou: O imprevisto é espécie
de Deus avulso que pode ser voto decisivo na assembléia
dos acontecimentos.
Luis Otavio Cavalcanti observa do modo perdulário com que
Marco Maciel gasta silêncio, sem deixar de ser um crente
na alquimia da conversa. Integra, entre os pernambucanos, a cota
dos moderados na política, porque também temos os
de pavio curto. Ou mesmo, sem pavio.
Ele é como que a versão moderna do Marquês
de Olinda, para quem Câmara Cascudo reservava essa observação:
“Araújo Lima não acelera, não retrograda
mas também não pára”. Por isso, o estilo
de Marco Maciel não tem nada de Opus Dei e tudo de “opus
by day and by night”.
Por outro lado, a tradição pernambucana é
a dos intelectuais engajados na política, de que Nabuco
é o exemplo básico. Como Nabuco, Marco Maciel chega
à Academia sem trazer da Política nenhuma decepção,
nenhum amargor, nenhum ressentimento.
K. Mehnert, numa verdadeira contramão, argumenta que o
intelectual nunca deveria meter-se em política, já
que lhe faltam senso de oportunidade e capacidade de tomar decisões.
Bobbio diz diferente: “Na medida em que se faz político,
o intelectual trai a cultura; na medida em que se recusa a fazer-se
político, inutiliza-a. Ou traidor ou inutilizador.”
Gustavo Krause apreendeu muito bem o pensamento de Bobbio de superação
do dilema, pois o que há nisto é distinção
e integração recíproca, portadora de uma
força não-política, uma força moral,
sobre a qual repousa a missão política do homem
de cultura.
O intelectual é espectador ativo da cena cultural, conseqüentemente,
apto a perceber que o ato público abrange raio muito mais
amplo do que o ato meramente intelectual.
A convivência da política com a atividade do intelectual
esplende nesta Casa. Machado de Assis afirmou: “Na Academia
(a política) é o sentimento mais ativo de todos
e a ABL, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi
uma academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais
preciosa das vidas – a vida eleitoral.”
A política concedeu a Marco Maciel, assim como a muitos
dos nossos confrades, a boa oportunidade de ouvir o povo, conhecer-lhe
as agruras, acumular experiências. Esse cabedal apresenta-se
nos seus textos onde o político não apenas reclama
direitos, mas assume responsabilidades.
Ao se sentar neste cadeiral José Sarney perguntou:
“A ação política não é,
em grande parte, tanto a que se diz e a que se cala, como a que
se ouve e a que se guarda; a que se imagina ter sido silenciada
como principalmente a que se cumpre?”
Foi muito bom que Marco Maciel buscasse a nossa companhia. Era
natural que o escritor, o professor universitário, o conferencista,
o pensador, conhecesse saudações de chegança
em mais uma academia, pois já as ouviu ao ser introduzido
na Academia Pernambucana de Letras. Naquela ocasião, escutou
de um confrade este prognóstico: “Foi natural que
integre a Academia, a Pernambucana. Isto, por enquanto.”
Pois bem, o “por enquanto” acabou. Marco Maciel chegou
à Academia Brasileira.
II
- EDUCAÇÃO E CULTURA
Muito aprecio a postura que tomou, em particular ao tempo de
Ministro da Educação, na defesa da idéia
de interar educação e cultura. São palavras
suas:
“A educação é uma verdadeira interiorização
da razão. Nela se conjugam admiravelmente os valores da
tradição e do progresso, visto que por ser capaz
de receber a herança dos seus antepassados, de compreendê-la
e assimilá-la, é que o homem se capacita a melhorá-la
e desenvolvê-la”. E mais adiante, no mesmo livro Educação
e liberalismo, endossa a visão da cultura não apenas
como conceito amplo, mas de abrangência, onde consideram-se
tanto os bens móveis e imóveis plenos de valor histórico
e artístico, quanto os bens de produção cultural.
Desde então torna-se possível partir para uma política
de desenvolvimento do fazer cultural de uma gente.
Na Humanidade cabe a cada um o dever de transmitir aos vindouros
aquilo que recebeu dos antepassados – e aperfeiçoá-lo.
É o tempo tríbio.
Marco Maciel acredita na cultura como fonte de criatividade, dinamizadora
da sociedade moderna, reordenadora dessa sociedade no sentido,
inclusive da superação de crises. É o passado
funcionando como ponto de referência e não como algo
a ser repetido.
O futuro, creio, fica desdobrado em três momentos: o futuro
passado, aquele que, imaginado, não aconteceu; o futuro
presente, o que hoje vem sendo concebido para o amanhã;
o futuro futuro, aquele que ainda não formatamos. Para
enfrentar esse futuro uma senda está aberta; se não
a seguirmos ninguém esperará por este “país
do futuro”: a senda do conhecimento.
Esse conhecimento é a educação galgada degrau
por degrau. Exames de admissão, cursos, aprovação,
medindo conhecimento. Pode ser atingido, como atualmente é
proposto, também com o auxílio de discriminação
positiva, passo na luta pelos direitos universais de cidadania.
No entanto, como adverte Ralf Dahrendorf, sem que se torne um
princípio permanente, a fim de escapar de três dúvidas.
A primeira: não haverá risco de uma espécie
de injustiça invertida pela qual os tradicionalmente privilegiados
se tornem os novos subprivilegiados?
A segunda: será a representação igualitária
a todos os níveis realmente aquilo que todos os grupos
querem ou precisam?
A última dúvida: a discriminação positiva,
em alguns casos, não estaria a produzir um novo tipo de
segmentação rígida que destrói a própria
sociedade civil que pretende criar?
Octavio Ianni, logo quem, em entrevista já hoje clássica
ao nosso confrade Alfredo Bosi, foi categórico ao dizer:
“Em vez de enfrentarmos o problema na raiz – melhorando
as condições sociais de brancos e negros de diferentes
níveis sociais – se estabelece a cota.”
Bem, eis aí um tema para reflexão e futura avaliação
do novo acadêmico, no âmbito da Educação,
uma das suas maiores dedicações.
Senhoras,
Senhores:
Nas academias, é lição de Alceu de Amoroso
Lima, são de duas ordens as funções –
de tradição, de manutenção do que
ficou de bom e merece preservação; e de criação,
de renovação da cultura.
O Brasil precisa investir na Cultura e carece dos que se dediquem
a ela.
Para tanto a Academia conta com a sua participação.
Não lhe faltam as qualificações e não
foram escassos os sofrimentos em desafios superados. Regue as
nossas raízes. Carlos Castello Branco prefaciando-lhe Idéias
liberais e a realidade brasileira louva sua compreensão
de Cultura integrada à Educação, que vem
muito do que aprendemos em nossa terra.
Quem nasce em Pernambuco, nasce no meio da história brasileira.
A nossa pernambucanidade tem espírito de província,
sem provincianismo e sem melancolias. Resulta da assimilação
cultural que só nos faz levar à coexistência.
E a História tanto avança pelo movimento dos vivos
como acontece sobre o pó dos mortos.
Já disse a prócer da República que veio ironizar
a suposta mania de grandeza dos pernambucanos, ao repetir aqueles
refrões de “Pernambuco falando para o mundo”,
“O Capibaribe e o Beberibe se juntam para formar o oceano
Atlântico”, de que não temos a tal “mania
de grandeza”. É um equívoco. O que temos é
grandeza mesmo.
Os pedágios que a vida pública nos obriga a pagar,
o caso de Frei Caneca é um deles, pagamo-los, como gosta
de falar Josué Montello, deixando pelo caminho pedaços
de indulgência.
Aconteceu-nos o exílio do estômago, somos pobres,
mas não nos toca o desterro do espírito.
Marco Maciel, em coerência, vem expressando essas idéias
uniformemente, desde os tempos, bons tempos, de aluno dos jesuítas
no Colégio Nóbrega. Continuou na Faculdade de Direito,
nas associações estudantis de âmbito estadual
e federal, no cargo de Secretário de Estado, na Assembléia
Legislativa, na bancada e na Presidência da Câmara
dos Deputados, nos Ministérios da Educação
e da Casa Civil, no Senado Federal, no Governo do Estado, na Vice-Presidência
da República, nas organizações internacionais
em representação do Brasil, nas campanhas políticas,
em múltiplas tribunas, na cátedra de Direito Internacional
Público.
É um coerente. É um discreto mas sem o pecado da
omissão. E tenham certeza de que continua a espionar o
que ainda lhe reserva o tempo, sem pressa e sem descanso.
Marco Maciel é teimoso. Não parece, mas é.
Só que a sua teimosia é de utilidade pública.
Uma das coerências da obra escrita de Marco Maciel é
o reconhecimento ao que aprendeu em Gilberto Freyre. É
raro texto seu em que não haja pinçado uma lição
gilbertiana.
Por isso, incomoda-nos tanto, a ele e a mim – no meio século
de amizade que a cada dia fortalecemos, nos modos diferentes de
como somos em tanta coisa – certas críticas feitas
a Freyre de modo nada feliz.
Eduardo Portella, nosso confrade, mestre, mestríssimo,
a esse propósito escreveu recentemente com a precisão
que lhe é tão própria, o seguinte:
“As operações hermenêuticas (de Gilberto
Freyre) puderam contar com o aval e o apoio do escritor, do imaginoso
da linguagem. A prosa, a vida, calorosa, colorida, oxigenavam
o seu desconcertante conjunto interpretativo. A ociosa separação
entre o escritor e o pensador sofreu aqui os seus primeiros abalos.
Na verdade ela sempre decorreu de uma insuficiência crítica
– a que consiste em retirar o pensamento da linguagem, ignorando
a sua parceria constitutiva.”
E segue:
“Já é hora de retirar as interpretações
de Freyre, pensador ostensivamente relacional, das velhas e cansadas
dicotomias... o forte de Gilberto Freyre são as correlações,
as trocas não apenas materiais porém imateriais,
as infiltrações e os intercâmbios simbólicos,
as jornadas do desejo, todas essas instâncias da alteridade
que permaneciam escondidas ou emudecidas. Ou antes de tudo permaneciam
proibidas pela moral prescritiva e inabilitadas pela nossa ciência
social monodisciplinar... Gilberto contribuiu para desmitificar
as crenças epistemológicas das ciências sociais
monodisciplinares. O que acontece é que elas jamais foram
capazes de acompanhar a pluralidade das diferentes intervenções.
Se Freyre fosse um sociólogo puro e duro jamais teria dado
conta da diversidade brasileira, porque o sociologismo acadêmico
tem se distinguido por irresistível inapetência diante
do outro, do não idêntico.”
III
- IDEÁRIO MACIELISTA
De todos os seus textos editados e ofertados à leitura
da nossa gente, em Democracia e brasilidade, encontro o melhor
cariz do seu ideário.
Do plano democrático, guardo expressivas sentenças:
“Não podemos pensar em democracia se não tivermos
uma sociedade partícipe. Não podemos ter uma sociedade
de excluídos. Dar o voto ao analfabeto é importante,
mas não lhe assegura o direito à cidadania”.
Ou,
“...a atividade política é uma atividade dialógica,
é uma atividade que pressupõe a discussão
para que cheguemos à solução dos problemas”.
E, ainda:
“Não seremos uma Nação justa, equilibrada
e solidária, enquanto o direito à vida, à
educação, à saúde, ao trabalho e à
cultura não forem assegurados a todos os brasileiros.”
Como que, para exemplificar o comportamento a adotar em nosso
Plenário:
“Devo também dizer que sempre tive presente –
isso para mim é uma regra de conduta – que conviver
não é concordar. Podemos e devemos conviver bem
sem que isso signifique necessariamente concordâncias”.
Do seu sentimento do arrocho pernambucano, sem queda da expressão
da brasilidade:
“O sacrifício supremo de Frei Caneca há de
estar sempre presente na consciência nacional, como exemplo
da dedicação pernambucana à causa da nacionalidade
e das idéias liberais”.
Ou esta outra declaração:
“...perguntaram a Carlos Drummond: Por que você não
volta a Itabira? Ele disse: porque nunca saí de lá.
Com isso, Drummond queria dizer que tinha dentro dele uma alma
telúrica; que estava preso à sua terra, à
sua gente.”
É difícil selecionar as sentenças no plano
geral da Política, mas não evito reproduzir algumas.
“O Liberalismo que defendo é o Liberalismo social,
que nada tem a ver como estilo de vida com o laissez-faire, laissez-passer.”
E prossegue:
“Não prego o Estado mínimo, nem acredito que
a “mão invisível do mercado” seja capaz
de regular com eficiência os conflitos sociais. Acredito,
como Popper, que o importante em Política não é
saber quem deve governar, mas sim que parcelas de nossa liberdade
devemos ceder no governo. Liberalismo é humanismo, anterior
a qualquer ideologia.”
Ou essa confissão do modo de idealizar e agir:
“Deve o político – como aprendi com o Padre
Lebret – procurar andar mais depressa que os acontecimentos,
ver com antecipação a realidade e agir prontamente
sobre a causa dos problemas.”
Das valiosas e numerosas publicações sobre a questão
educacional, observo o prazer intelectual com que parece resumir
tudo o que ansiou doutrinar e fazer, nesta constante citação
de H. G. Wells:
“A civilização é uma corrida entre
a educação e a catástrofe.”
Mais duas assertivas, estas, reveladoras da fé e do espírito
de família. A primeira:
“Repito com Isaías, todo ser humano é como
erva, e toda a sua glória como flor do campo. A erva seca,
a flor fenece e somente a palavra de Deus permanece.”
A segunda:
“...meu pai, para mim é modelo de homem público
e de quem aprendi, desde muito cedo, lições do civismo.”
IV
- JORNALISMO
A cadeira que lhe confiamos, Acadêmico Marco Maciel, tem
um forte acento jornalístico, como bem ressaltou no seu
discurso. Dá chances para revelar companheirismo com o
brasileiro singular a quem sucede.
Roberto Marinho, muito moço, tornou-se homem de jornal.
Marco Maciel, a mesma coisa. Com graduação, é
muito óbvio, diferente, contudo igual na percepção
do papel enlaçador do jornalismo, sob o ponto de vista
econômico, social e cultural. Enquanto um assumiu O GLOBO,
o outro, aos 14 anos, em abril de 55, faz quase 50 anos, colaborava
em O TIC TAC, com circulação entre colegas, no entorno
da rua Afonso Pena, onde morava. Lema do jornalzinho, datilografado
e rodado em mimeógrafo: “O jornal que não
diz o que pensa porque não pensa o que diz”.
À moda Roberto Marinho, chega à direção.
Foi eleito Presidente. Obteve 14 votos e o adversário,
Adilson Codeceira, 13. A primeira eleição, a única
delas, difícil. Muda o lema do jornal para: “O jornal
que diz o que pensa porque pensa o que diz.” Muito próprio
dele. Como Roberto Marinho, torna clara a orientação
do jornal, agrega ilustrações e charges, proíbe
personalismo no noticiário, sobretudo porque o leitor percebeu
que o nome do novo Presidente não consta mais nos anúncios
do curso de halterofilismo. Como acabou de fazer Marco Maciel,
lembro que Roberto Marinho não foi só do hipismo.
Também foi boxeador.
O TIC TAC disputa leitores com jornais de bairros recifenses:
PATACO-TACO, ZIZ-ZAG, RAIO e outros mais.
Adiante, outro jornal é cria sua, A VOZ DO GRÊMIO,
dos alunos do Colégio Nóbrega, com estatuto, política
de comunicação a cumprir, eleição
de diretoria, tudo aquilo tanto do seu gosto.
Mais à frente, dirige revistas acadêmicas e de partidos
políticos.
Nos dias de hoje seu comparecimento de articulista nos grandes
jornais do país tem freqüência, tem leitor,
tem respeitabilidade e se afina com uma certa coincidência
nos mais recentes ocupantes da Cadeira 39. Digo coincidência,
pois exclusivismos do tipo naturalidade, profissão predominante,
não existem na seleção de nosso pares. Seria
improcedente alegação dessa natureza.
Aqui não há capitanias hereditárias.
Aqui não há Cadeira de jornalista, de teatrólogo,
de gaúcho, de baiano, de sacerdote, de parente, de militar,
com observa em seu discurso o novo confrade.
Há Cadeiras para intelectuais merecedores, desejosos da
convivência, sabedores de que quem importa é a Academia
e não o transitório passageiro das glórias
de Machado. Eu, e falo exclusivamente por mim, também não
me apetece ter na confraria gente complicada, anticonvivial, arestosa.
Quando voto, seleciono num vestibular para as letras e noutro
para a convivência. Não há distrato no contrato
entre “imortais”.
O seu caso, Acadêmico Marco Maciel, é do academicoíta
inteiramente academiável, como Roberto Marinho, por quem
todos na casa tinham respeito e admiração.
Pessoalmente, nunca achei jeito de, entre todos os confrades,
tratar a dois deles, a não ser por doutor. Doutor Barbosa
Lima e Doutor Roberto.
Muito já se disse daquele nosso confrade e o seu elogio
máximo acabamos de ouvir. Mas não sonego o desejo
de dar-lhe o meu juízo, apenas em duas de suas tantas vertentes.
Roberto Marinho não confundiu arte e educação
com entretenimento. Distinguia-os. Roberto Marinho reagiu às
censuras. Não aceitou espartilho econômico imposto
às manifestações artísticas, a partir
do comando pessoal para que se respeitassem as identidades culturais
e se promovesse a interação educação
e cultura.
Roberto Marinho sabia que a integridade humana também depende
da imaginação, da criação, do espetáculo
das emoções, do espetáculo da vida.
Roberto Marinho tinha a percepção de que a gente
não pode ver sozinho. Certo dia, fui ao seu gabinete. Queria
porque queria ele que Paraty entrasse na lista dos bens reconhecidos
pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. O processo
dependia de passar por mim, Secretário Federal da Cultura.
Na oportunidade, não havia condições técnicas.
Fui lá dar-lhe um drible de corpo. Coisa difícil.
Creiam, consegui. E ainda não éramos confrades,
nem amigos, simples conhecidos.
Começou, como fazia com os visitantes, a mostrar, da grande
janela envidraçada do escritório no Jardim Botânico,
uma das mais espetaculares vista desse nosso tão espetacular
Rio de Janeiro.
Lembrei-me do poeta uruguaio que chegando ao Rio, foi ao Corcovado
num finalzinho de tarde. O sol descendo, as luzes começando
a acender lá por baixo, pelas praias, ruas, morros, casinhas,
edifícios e mansões. Encantou-se. Ao lado, uma criança.
Chamou a brasileirinha e lhe disse:
– Venha ver comigo. Ajude os meus olhos. Eles precisam ver
isto. Sozinhos, é impossível. É a beleza.
Roberto Marinho gostou do que ouviu. Disse, cerimonioso e categórico:
– Doutor Marcos, vou reunir os filhos, para juntos vermos
o Rio. É verdade. É preciso juntar as retinas.
Roberto Marinho valorizava o ver junto. Queria os olhos dos filhos
para ajudá-lo a ver, aqueles filhos que o ajudaram, aprenderam
com ele e hoje, de forma salutar e competente, fazem por ele,
em nome dele.
Outra coisa: os amigos mais próximos habituaram-se, nas
reuniões sociais, nos encontros históricos e de
bom gosto no Cosme Velho, entre uma conversa e outra, ouvi-lo
a repetir o bordão do coração:
“Cadê Lily?”
O Cadê Lily era a voz interior, ostensivamente de bem-querer,
de partilha, de segurança, de opção feita
em diversos tempos e numa só e definitiva consagração.
Dona Lily precisava estar perto, a fim de ajudá-lo a escutar.
Pareceu-me a cena em que Shakespeare põe Marco Antônio,
com César aos braços, bradando no discurso estupendo:
“Amigos, romanos, emprestem-me os seus ouvidos.”
Dona Lily, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto
continuam ouvindo e vendo por Roberto Marinho.
V
- HOMEM DE FÉ
Acadêmico Marco Maciel:
Já se foi o tempo em que a folhagem do arvoredo da rua
Afonso Pena e as mangueiras do pátio do Colégio
Nóbrega abanavam o tempo, que fluía macio para a
nossa juventude.
Oscar Wilde garantia que a tragédia da velhice é
que continuamos jovens. Sessentões, na descendente da parábola,
já estamos nos longes da saudade. A sua expressão
da saudade deve ter dado um jeito de estar aqui, acolitada por
Gisela, Christiana, João Maurício, seus genros,
seus netos, ao comando de Anna Maria. A minha expressão
de saudade também deve estar por aqui. Ele foi seu xará
e muito seu amigo. Admirava-o.
Mia Couto, nosso confrade e grande escritor moçambicano,
escreveu que um morto amado nunca pára de morrer. No meu
coração há um gemido do inacabado. É
a saudade do filho. O seu coração também
geme. É a saudade da Dona Carmen.
Sorte nossa é que o frescor das emoções desta
noite suplanta o nosso envelhecimento físico, convive com
as saudades e nos lança ao desafio de roer o tempo, em
atitude de paciência e persistência.
Nesta fase da vida, não podendo dar maus exemplos, damos
conselhos.
Marco Maciel tem visível e praticante acento eclesiástico.
Sua convicção religiosa é exemplar. A formação,
uma apoteose cristocêntrica de serenidade e conhecimento.
Apreciam-na de congregados marianos a incréus.
Desconfio que se houvesse escolhido o sacerdócio, hoje
o saudaria assim:
Dom Marco Antonio, Cardeal Maciel.
Imagino, só por provocação, o brilho nos
Concílios, as articulações nos corredores
do Vaticano, o contributo espiritual à redação
das Encíclicas, a oportunidade do solidéu e a impossibilidade
da tonsura, o séquito de mitríferos, baculíferos
e turibulários, tudo encimado pelo exemplo das virtudes
teologais.
Mas foi bom que Deus o tenha destinado para ser pai de família,
grande pai de família. Foi muito bom!
Em verdade, em verdade a todos digo que fascina a sua postura
de católico. A sua Igreja é a da mão estendida,
a do amor. Não posso, jamais, imaginá-lo em atitudes
de intolerância, de má vontade, afastando fiéis,
sem compreender sentimentos de jovens, desatento aos motivos dos
mais velhos, marginalizando sonhos familiares de sadia construção,
ignorante dos serviços prestados por membro da comunidade,
encharcado de preconceitos, confundindo arte com lascívia,
como certos mentecaptos que, trepados em autoridade eclesiástica,
são contra museus de arte sacra, dizendo que lugar de imagem
é nos altares.
A sua Igreja tem éclat. Não é a distorção
da Igreja. Não atemoriza, não estimula diáspora,
não escurece, não separa.
Cedo, Marco Maciel tornou-se notoriedade sem restrições.
Tem dignidade exemplar, na sua modelagem de discrição
e modéstia.
Mas como identificar o balizamento da conduta de Marco Maciel
sem os pais, Dona Carmem e Doutor Maciel, e a mulher Anna Maria,
a admirável Anna Maria?
Heine estava certo ao reconhecer que o escritor, em casa, precisa
contar com o silêncio da companheira. O político
também, digo eu. Não só do silêncio
mas da palavra que, não o quebrando, ajude na hora polêmica;
que, não o violando, seja a confiança ante ameaça
de tropeços.
E Anna Maria nunca faltou.
E o pai, o quase centenário e tão lúcido
Doutor Maciel?
O filho mesmo pode explicar, como neste texto:
“E no seu exemplo (do pai), aprendi a identificá-la
(a política) como uma síntese de desprendimento
e coragem, conhecimento e ação, de ousadia e prudência,
de inteligência, discernimento e responsabilidade.”
Já da Dona Carmem quero contar cena que mantenho na mente
e que faz parte daquela conversa do coração de mãe,
a desfibrar fibra por fibra.
Era época de vestibular para a Faculdade de Direito. Muita
queima de pestana. Madrugadas de olho aberto. Alegrias adiadas.
A casa repleta de colegas para estudos em grupo, desatentos à
alimentação e concentrados nos livros. Ele fugindo
de Dona Carmem. Ela implora, sem sucesso, que tome, pelo menos,
um copo de leite. Vencida, desabafa:
“Quando passar o vestibular, vou tomar conta da alimentação
deste menino”.
Ao que parece, o vestibular continua...
Acadêmico Marco Maciel:
O seu discurso é um ato de fé, aquela operária
de todas as vitórias. A fé, o povo, o sol das praças
são imagens da sua fala.
O Brasil confia, ainda que dessangrado, despossuído, nos
seus filhos, nos seus líderes. Se já não
temos heróis, pelo menos que nos protejam os líderes,
no esforço de olhar para os humildes destinos dos que deslizam
em nosso derredor.
Bernard Shaw dizia que só temos tempo bastante para pensar
no futuro quando já não há futuro em que
pensar.
Então, cuidemos. Não consintamos que a oportunidade
vá fluindo lentamente como o tempo dos meninos. Há
que vigiar o amanhecer. É preciso buscar novas alvoradas.
Poentes não tem intimidade com o futuro. Sonhemos. O sonho
é o olho do futuro.
Senhor Presidente,
Confrades,
Família Maciel,
Família Marinho,
Senhoras, Senhores,
Dileto confrade Marco Maciel:
Vida que segue.
Para Vinícius de Moraes, em pessimismo:
“Tem dias que eu fico
Pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Pois é: a vida tem sempre razão
Pois é: a vida é que está com razão.”
Para João Cabral, igualmente lúcido:
“Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva
Mas o sol me deu a idéia
de um mundo claro algum dia.”
Já para Drummond, em conformismo:
“Êta vida besta, meu Deus.”
Vou terminar. Mas só o faço juntando o futebol,
que nos une e nos separa. Eu sou do Náutico. Ele, do Santa
Cruz. Falamos de futebol todo o tempo e juntos gostamos de recordar,
rindo do seu tom apaixonado, a frase excessiva de Albert Camus:
“Tudo o que sei sobre a moral, o comportamento e as obrigações
do homem, eu devo ao futebol.”
Olavo, zagueiro do Olaria, aqui do Rio de Janeiro, na década
de 60, ainda que de um time perdedor, só enxergava otimismo.
É dele a frase:
“Tudo fazeremo pela vitória.”
Eu, me segurando nos comigos de mim, sugiro ao acadêmico
Marco Maciel: siga o Olavo.