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Na
imortal peça Diálogo das Carmelitas, o sempre lembrado
escritor francês George Bernanos – tão ligado
ao Brasil pelo tempo em que viveu no interior de Minas Gerais, durante
a ocupação de seu país pelas tropas alemãs
– fez a superiora do Convento dizer estas sábias palavras:
“o que chamamos acaso talvez seja a lógica de Deus”.
Não tenho a pretensão de chegar ao
extremo de considerar como intervenção divina o fato
de haver sido pernambucano o primeiro ocupante da cadeira que tem
como patrono o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen. Nem tampouco
igualmente ouso comparar-me ao também insigne historiador
Manoel de Oliveira Lima. Nanja!
Impensável, todavia, negar a existência
de um ufanismo pernambucano, que nada possui da retórica
romântica desencadeada pelo Conde Afonso Celso em seu livro
Porque me ufano do meu país, publicado em 1900. Nosso ufanismo
é muito mais antigo, surgido no século XVII com a
expulsão dos holandeses, numa guerra planejada e realizada
inteiramente à revelia da coroa portuguesa, disposta a negociar
o Nordeste brasileiro. Um dos livros básicos sobre o assunto
– o do monge beneditino e meu ilustre conterrâneo Domingos
do Loreto Couto – intitula-se significativamente Desagravos
do Brasil e glórias de Pernambuco. Por isso, ao prefaciar
o livro de Gilberto Freyre Região e Tradição,
editado na década de quarenta, o saudoso romancista José
Lins do Rego escreveu que o povo pernambucano foi “capaz de
expulsar os holandeses e fazer o carnaval mais alegre do mundo”.
No século XIX, os pernambucanos voltaram
a lutar contra a opressão, dessa vez exercida pela própria
metrópole, em duas “revoluções libertárias”,
como as chamou o poeta Manuel Bandeira no poema Evocação
do Recife. A guerra dos mascates, uma guerra de “afirmação
nacionalista”, como observou Mário Melo – e as
revoluções de 1817 e 1824 também suscitaram
uma obra clássica de nossa historiografia: Os Mártires
pernambucanos, do Padre Joaquim Dias Martins, somente publicada
em 1854, mas escrita vários anos antes. Saliente-se, por
oportuno, a insuspeição do autor, que era português.
Temos, portanto, ali e acolá, razões de sobra para
nos orgulhar de nossa pernambucanidade, palavra inventada pelo mestre
Gilberto Freyre para caracterizar o nativismo de Pernambuco, tão
precisamente interpretado por Oliveira Lima.
Oliveira Lima tinha apenas vinte e sete anos de
idade e estava no início da carreira diplomática,
quando publicou a primeira obra Pernambuco, seu desenvolvimento
histórico, justamente a respeito de sua amada província.
Alguns autores se envergonham dos primeiros livros, por eles considerados
“pecados da mocidade”. Não foi esse o caso de
Oliveira Lima, em cujo livro de estréia já se revela
o eminente e atilado pesquisador, que ultrapassou o mestre Varnhagen
na apreciação crítica de nossa literatura colonial
e em outros estudos literários – um deles sobre Machado
de Assis –, na síntese de nossa formação
histórica, na interpretação da cultura das
nações em que serviu como diplomata – no Japão,
nos Estados Unidos da América do Norte e na Argentina –,
e, especialmente, na monumental biografia D. João VI no Brasil.
Como historiador, evitou a retórica dos antecessores, apresentando
Pernambuco tanto no contexto brasileiro como no cenário internacional.
Senhor Presidente,
Ao cumprir o rito de entrada, passo a desfrutar
da honra de sentar-me entre vós. Esta Casa desde seu nascimento
mantém-se fiel aos elevados propósitos de guardar
“a cultura da língua e da literatura nacional”,
conservar a tradição sem abandonar-se à rotina,
viver imersa na história das transformações
que se operam no Brasil e no mundo.
Expresso, por essas razões, a gratidão,
testemunho pleno de minha consciência e cálido sentimento
de meu coração, pela generosa acolhida que me dispensastes,
estimados acadêmicos, ao incorporar-me, de maneira tão
desvanecedora, ao vosso convívio.
Exercitar esta comunhão, plenitude da vida,
“é – como profetizava o poeta João Cabral
– ir entre o que vive”, transformar coexistência
em convivência, prática aliás aqui observada
desde seus albores, entre aqueles que laboram nos mais variados
territórios dos gêneros literários, inclusivamente,
se não estou sendo heresiarca, o discurso parlamentar como
manifestação cultural que em muitos casos realiza
a interseção entre a forma literária e o conteúdo
político.
Talvez este tenha sido o motivo de haver Joaquim
Nabuco afirmado “nós não podemos matar no literato,
no artista, o patriota, porque sem a pátria, sem a nação,
não há escritor e com ela há forçosamente
o político”, advertindo, porém, o autor de Um
Estadista do Império, “para a política pertencer
à literatura e entrar na Academia é preciso que ela
não seja o seu próprio objetivo; que desapareça
na criação que produziu, como o mercúrio nos
amálgamas de ouro e prata”.
Espaço da palavra, aqui se exercita no
perpassar de sua densa história a artesania da liberdade,
através da qual se busca entre o que separa aquilo que nos
pode unir, porque se queremos viver juntos na divergência,
que é princípio vital da democracia, estamos condenados
ao entendimento, sob pena de transformar idéias antagônicas
em soluções agônicas.
Apreciar a firmeza das convicções,
mesmo quando não são as nossas convicções,
pressupõe acreditar no poder das idéias que, antes
de ser um empecilho, devem concorrer para melhorar o convívio
humano.
É o que diz Norberto Bobbio, no prefácio
de Italia Civile: “Aprendi a respeitar as idéias alheias,
a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender
antes de discutir, a discutir antes de condenar”.
Como acontece nas Casas homólogas, nesta Academia a sucessão
é ideográfica: não se estabelece vinculação
entre patrono, antecessor e sucessor por gênero literário
ou qualquer outro liame, seja por profissão, seja por pertencer
a qualquer estado de nossa Federação. Não existe,
a qualquer título, cadeira cativa. João Neves da Fontoura,
ao receber Aníbal Freire, frisou que a ABL “sempre
se recusou a fazer distinções ou estabelecer categorias
de dogma, que Renan denominou de ‘unidade da glória”.
Prossigo citando João Neves da Fontoura: “Como disse
o maravilhoso estilista d’“A Vida de Jesus”: “Vós
considerais que o poeta, o orador, o filósofo, o sábio,
o político, o homem que representa, em sua plenitude, a civilidade
de uma nação, aquele que ostenta dignamente um desses
nomes que são sinônimos de honra e de pátria,
todos esses são confrades a trabalhar para uma obra comum...”.
Constata-se, entretanto, com relação
à cadeira 39, algo que parece ser a exceção
que confirma a regra. Desde seu primeiro provimento, a cadeira ostenta
uma característica comum, a de haver, a partir do patrono
Varnhagen, sido eleitos renomados historiadores, Oliveira Lima,
Alberto de Faria, Rocha Pombo e Rodolfo Garcia, ou por acatados
jornalistas, Elmano Cardim, Otto Lara Resende e Roberto Marinho.
Coube-me a dupla graça de ocupar a cadeira
cujo fundador é o meu conterrâneo Oliveira Lima e o
último ocupante o ilustre jornalista Roberto Marinho.
Atribuo tão imerecido regalo à mão
do Criador, para quem, já se disse “nada é coincidência,
tudo é providência”.
Conquanto não tenha sido o primeiro a escrever
sobre o Brasil – antes já o haviam feito, entre outros,
Frei Vicente de Salvador, Southey, Pêro Gândavo –,
ninguém pode negar a Francisco Varnhagen, Barão e
Visconde de Porto Seguro, ter imprimido caráter à
cadeira 39 com o título de “pai da historiografia brasileira”,
que lhe foi conferido por João Francisco Lisboa.
Partiu de Oliveira Lima a acertada indicação
do nome de Varnhagen para padroeiro. O autor da História
Geral do Brasil, de fato, foi, como afirma o proponente: “sem
contestação o criador da história da pátria,
se não em sínteses luminosas, pelo menos na comprovação
essencial; é tão-somente com respeito que devemos
encarar essa figura saliente da nossa literatura, posto sejamos
forçados pela justiça a salpicar das reservas indispensáveis
em todo estudo a nossa legítima admiração perante
ela”.
E prossegue: “O fato é que os fastos
literários se não ufanam entre nós de um historiador
parecido com qualquer dos espíritos superiores de cujos nomes
fiz menção. Francisco Adolfo de Varnhagen foi por
certo o mais notório e o mais merecedor dos estudiosos do
passado brasileiro: foi um ardente investigador, um infatigável
ressuscitador de crônicas esquecidas nas bibliotecas e de
documentos soterrados nos arquivos, um valioso corretor de falsidades
e ilustrado colecionador de fatos”.
Francisco Adolfo de Varnhagen, de origem germânica
e educação portuguesa, nasceu em São Paulo;
serviu como tenente de Artilharia no Exército de Portugal;
e talvez por estar em sintonia com seus homólogos brasileiros,
que consideram como arma de fogos profundos, largos e poderosos,
sua obra caracterizou-se pelo poder de seu pensamento, pela profundidade
de sua pesquisa e pela larga riqueza documental.
Seu sentimento de nacionalidade se manifesta inclusive
nos trabalhos que exitosamente realizou para descobrir, em Portugal,
o túmulo de Pedro Álvares Cabral no Convento da Graça,
em Santarém.
Diplomata, soube conciliar o exercício
das missões no exterior, como o fez em Portugal e Inglaterra,
com o ofício de historiador para aprofundar pesquisas e estudos
do nosso passado em sua devoção pelo Brasil.
Aliás, com isso, Varnhagen objetivava,
consoante suas palavras, transcritas no discurso de posse de Oliveira
Lima nesta Casa: “formar e melhorar o espírito público
nacional e foi sem tergiversações que desempenhou
este papel de moralista, na acepção mais elevada da
palavra, a saber, do historiador que faz servir a história
de ensinamento para os seus contemporâneos, porque, como Varnhagen
disse algures, ‘o presente não é mais do que
a repetição do passado’”.
A “qualité maitresse” da cadeira
se mantém em seu fundador, com Oliveira Lima, acatado historiador,
diplomata, professor, crítico literário, bibliófilo
e jornalista, a quem já tive ensejo de referir-me.
Ao escrever No Japão, ao tempo que se encontrava
em Tóquio, em fins do século XIX, com a missão
de instalar a legação brasileira naquele país,
Oliveira Lima demonstra uma atilada percepção a respeito
do papel que a nação japonesa iria ocupar no mundo.
Colaborou com jornais de Pernambuco, Rio de Janeiro
e São Paulo; e no campo político, foi republicano
durante a Monarquia e monarquista após a proclamação
da República, por divergir dos rumos que tomara o Movimento
de 1889. Poder-se-ia classificar Oliveira Lima como dotado de “uma
índole de controvérsia”, como se autodefiniu
o acadêmico Assis Chateaubriand.
Sua obra mais importante é indubitavelmente a biografia Dom
João VI no Brasil, por traçar-lhe um retrato fiel
e um quadro preciso do Brasil do seu breve reinado.
Desiludido com a carreira diplomática,
aposentou-se e foi morar nos Estados Unidos. Lá passou os
últimos anos de sua vida, lecionou, legou sua biblioteca,
acervo estimado em 40 mil volumes e outras artes, para a Universidade
Católica da América, com sede em Washington. Em lápide
de granito pernambucano, está inscrito o seu lacônico
epitáfio: “Aqui jaz um amigo dos livros”.
Com a eleição de Alberto de Faria,
a cadeira 39 segue ocupada por historiador.
Bacharel em Direito pela Universidade de São
Paulo, exerceu a profissão e foi também jornalista,
produzindo artigos de natureza política inclusive, valendo
destacar textos relativos ao candidato Arthur Bernardes à
Presidência da República.
Sua principal obra, talvez por haver sido empresário,
foi a biografia de Irineu Evangelista de Souza, Barão e Visconde
de Mauá, publicada em 1926.
Ao ingressar na Academia, expôs a sua satisfação
em resgatar a memória de Mauá. “Coube-me –
expressou em seu discurso de posse – a fortuna de poder reunir
papéis que se perdiam, documentos que se consumiam, de reavivar
tradições que iam desbotando, a tempo de fixar as
linhas desse vulto extraordinário em estudo que eu mesmo
espero completar e que outros hão de embelezar”. Recebido
por Hélio Lobo, dele mereceu, sem ser encomiástico,
o seguinte elogio a obra: “Em Mauá vistes bem o caráter
e a ação, aquele direito em seu rumo, está
obrando prodígios para época tão noviça.
Mais adiante vem salientar o comovedor procedimento que Mauá
teve ao ensejo de sua concordata”: “Não conheço,
na trama esplêndida, coisa mais bela do que a entrega de bens
pessoais à concordata, numa renúncia total para salvação
do que lhe importava acima de tudo, a honra”.
Além do trabalho sobre Mauá, Alberto
de Faria publicou “Política Fluminense e A questão
do Banco Hipotecário do Brasil, havendo pronunciado nesta
Academia, a respeito de Rio Branco, palestra ainda hoje muito apreciada.
No governo de Washington Luís, foi designado para o cargo
de Embaixador do Brasil em Tóquio, não chegando contudo
a assumi-lo.
José Francisco da Rocha Pombo, paranaense
de Morretes, é autor da História do Brasil, sua obra
mais importante. No Colégio Nóbrega do Recife, dirigido
por jesuítas, onde estudei, era o livro freqüentemente
citado.
Rocha Pombo, nome pelo qual se tornou conhecido,
exerceu atividades no magistério, no jornalismo e na política,
nesta como deputado provincial (correspondente hoje a estadual),
pelo estado de seu nascimento.
Polígrafo, é autor de História
do Paraná, História de São Paulo e História
do Rio Grande do Norte. Escreveu Nossa Pátria, várias
vezes reeditada, o Dicionário de Sinônimos e contos;
além de um romance ou, para alguns críticos literários,
novela, intitulada No Hospício, na vertente do simbolismo.
Iniciou o movimento para instalação
da Universidade Federal do Paraná nos fins do século
XIX, que somente se tornou realidade com a República.
Eleito para a Academia Brasileira de Letras em
março de 1933, antes de empossar-se faleceu no Rio de Janeiro
e ora lhe presto a devida reverência da saudade.
Nascido em Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte,
Rodolfo Garcia foi escolhido para a cadeira 39 em 1934, após
o desaparecimento de Rocha Pombo.
Diplomou-se bacharel pela tradicional Faculdade
de Direito do Recife, projetando-se como historiador, jornalista,
professor e filólogo.
Hostilizado por Dantas Barreto, por críticas
no Diário de Pernambuco ao seu governo, sob o pseudônimo
de Sargento da Guarda, Rodolfo Garcia transferiu-se na segunda década
do século XX para o Rio de Janeiro. Amigo de Capistrano de
Abreu, com quem trabalhou na tarefa de anotar a 3ª edição
da História Geral do Brasil, de Varnhagen, completou com
denodo e esmero as Efemérides Brasileiras, de Rio Branco,
então inconclusas.
Entre as suas principais obras, salientaria o
Dicionário de Brasileirismos”. Na introdução
do trabalho, o autor opina lucidamente: “De importância
incomparavelmente menor para a evolução glotológica
do português no Brasil foi o contingente prestado pelos idiomas
africanos para aqui transportados com os escravos pelo tráfico
negreiro. Ainda assim, a raça infeliz que foi o principal
fator do nosso progresso econômico, até além
de meados do século passado, contribuiu para a linguagem
brasileira com um vasto acervo de vozes designativas de utensis
do serviço agrário, mineiro e doméstico, de
várias espécies de iguarias, de plantas e animais,
em uso constante na elocução familiar, chegando mesmo
algumas a transpor os lindes da rusticidade para que se incorporem
ao léxico literário”. Ao analisá-la,
no discurso de posse na Academia, Elmano Cardim diz ser “um
excelente esboço que revela a influência da explicação
geográfica, tão em voga na época de sua formação
mental e mostra, ainda, a decisiva autoridade de Varnhagen, o primeiro
a frisar a necessidade do estudo das línguas indígenas”.
Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Diretor do Museu Histórico Nacional e da Biblioteca
Nacional, apelidada, à época, de Academia garciana,
em virtude das reuniões que informalmente promovia, para
discussão de assuntos culturais.
Publicou inúmeros trabalhos, além
dos referidos, tais como Nomes de aves em língua tupi, Notas
a um dicionário-corográfico, histórico e estatístico
de Pernambuco, juntamente com Aprígio Garcia, seu irmão,
e artigos em revistas sobre assuntos de sua especialidade.
Como notara Levi Carneiro, a eleição
de Elmano Cardim interrompe a seqüência de historiadores
na cadeira 39. Na sua oração de posse, o novo acadêmico,
um jornalista, pontua que “o fiat da história está
contida no subsídio cotidiano do jornal. O fato, alimento
diário da imprensa, constitui, depurado das suas emoções
a substância da História. Encadeado na seqüência
de suas relações, fixa-se nas cores prismáticas
que marcam a tonalidade de um momento na transição
do efêmero para o duradouro. Quando o historiador o encontra
assim estratificado pelo tempo, tem ao seu dispor a matéria-prima
para a interpretação de uma época ou para a
determinação de um ciclo da evolução
da humanidade”.
Levi Carneiro, em seu discurso de saudação
ao recebê-lo, discrepa desse entendimento: “Em certo
sentido, a imprensa e a história parecem-me quase antagônicas,
de sentido e objetivos diversos”. E acrescenta ser o jornalista
“antes, um protagonista, um personagem da história,
participando dos episódios, influindo neles”.
É de ressair que, além de jornalista,
o seu novo ocupante agrega à memorialística pátria
expressivas contribuições, como Vidas Gloriosas, Graça
Aranha e o Modernismo no Brasil, Joaquim Nabuco, Homem de Imprensa,
Na Pauta da História, A Vida Jornalística de Rui Barbosa
e Justiniano José da Rocha, originada de conferência
feita no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
em comemoração ao centenário de morte do periodista
e homem público do Segundo Reinado. Para Elmano Cardim “Justiniano
José da Rocha teve, no período em que escreveu os
seus jornais, uma indiscutível influência nos acontecimentos
políticos que se desenrolaram no país. Com sua inteligência
e sua cultura, servindo à causa de um partido, muito contribuiu
para que na consciência nacional se consolidassem os princípios
e postulados que haviam de assegurar à democracia brasileira
uma continuidade que não sofreu com a mudança do regime
em 1889, nem se alterou com as crises tantas vezes surgidas depois
da vida republicana”.
Natural de Valença, município do
Rio de Janeiro, Cardim era advogado, tendo desempenhado cargos públicos
no Arquivo Nacional e participado do staff de seis ministros de
Estado de diferentes governos e do gabinete do Presidente Café
Filho.
Reconhecido como figura de bom trato, a Elmano
Cardim, segundo Abgar Renault, se encaixaria com perfeição
o brocardo português: “Homem de uma só palavra,
homem de um só parecer, antes de quebrar que de torcer”.
Otto Lara Resende, mineiro de São João
del Rei, berço também do Presidente Tancredo Neves,
nasceu, como se diz no dialeto da engenharia genética, com
a profissão de jornalista em seu dna. Seu pai, professor
de português e autor de uma gramática da língua
portuguesa, era jornalista e fundou A Tribuna em sua terra.
Jornalista a partir dos dezesseis anos, Otto lembra
o Cardeal de Retz: “há coisas impossíveis que
só certos homens conseguem fazer; um jornal tem de ser obra
deste gênero de homens – o animador, capaz de recrutar,
congregar e motivar uma equipe de profissionais reunidos em torno
de alguma coisa mais alta do que as mesquinhas vaidades e bem para
lá das paupérrimas ambições materiais.
O jornal tem alma; tem uma dimensão moral e cultural, por
mais escondida que esteja na liça braçal de todo dia.
‘ O jornal é um ser vivo. Age e reage como um ser vivo’
– escrevia Edgar (da Mata Machado), no ‘O Diário
de Belo Horizonte’, há quase indeléveis quarenta
anos”.
Formou-se em Direito e desempenhou funções
públicas no Brasil e no exterior como adido cultural em Portugal
e na Bélgica.
Seu talento de escritor se revela no romance O
Braço Direito, na novela A testemunha silenciosa e, de modo
especial, no conto, com os livros O Lado Humano, Boca do Inferno,
A Cilada, As Pompas do Mundo entre outros e, no campo da memória,
O Príncipe e o Sabiá e outros perfis.
Iniciou-se no jornalismo através de Hélio
Pelegrino. Genial frasista, mercê da riqueza estilística,
juntamente com os amigos Pelegrino, Fernando Sabino e Paulo Mendes
Campos, todos das Alterosas, que integrou “os quatros cavaleiros
de um íntimo apocalipse” – como se auto-designavam.
No Rio de Janeiro, trabalhou em importantes jornais
(Jornal do Brasil e O Globo) e revistas (Manchete e Fatos e Fotos),
fez jornalismo político e seus artigos, muitas vezes caústicos,
versavam sobre temas da atualidade.
Para Machado de Assis, as circunstâncias
são também fadas madrinhas. Com efeito, elas ajudam
a tecer o acaso com invisíveis sinais que permitem descobrir
um continuum, isto é, uma linha comum, que exibe ao longo
do tempo uma identidade entre Varnhagen e os sucessivos titulares
da cadeira 39. Malgrado as acentuadas diferenças entre as
duas profissões, é cediço apontar uma certa
simbiose entre historiadores e jornalistas, pois se semelham no
registro dos fatos e na interpretação dos acontecimentos.
O jornalista – aceitai a heterodoxia – em alguns casos
seria o historiador com o verbo no tempo presente.
No caso desta cadeira, – acode-me ainda
o fato de os jornalistas Elmano Cardim, retratando a figura de Justiniano
José da Rocha; Otto Lara Resende, com O Príncipe e
o Sabiá, e finalmente Roberto Marinho em Uma Trajetória
Liberal, haverem feito incursões no terreno das memórias.
E, como dilucidou André Maurois, toda biografia
toca à história, pela reconstituição
do momento em que se situa a vida da figura evocada.
Senhor Presidente,
“O ato de escrever – afirmou com propriedade
Adonias Filho – é o mais público de todos os
atos”.
Isso me leva a destacar, na linhagem da cadeira
em que me invisto, outra ainda mais saliente característica
comum. Pairando acima da formação intelectual dos
seus ocupantes, desvela-se uma estirpe de homens públicos,
porque todos atentos à res publica, res populi. Cícero,
o romano, em obra seminal sobre o assunto (De Republica I, 25),
foi o primeiro a conceituar o sentido de res publica, ao estabelecer
que há de considerar-se povo “não como toda
reunião de pessoas, de qualquer forma congregadas, mas um
consórcio sob a égide do Direito, pelos interesses
comuns almejados pelas sociedades”. Nicola Matteucci, no Dicionário
de Política, comenta: “é uma palavra nova para
exprimir um conceito que corresponde, na cultura grega, a uma das
muitas acepções do termo politéia, acepção
que se afasta totalmente da antiga e tradicional tipologia das formas
de governo. Com efeito, ‘res publica’ quer pôr
em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum,
a comunidade, enquanto que, quem fala de monarquia, aristocracia,
democracia, realça o princípio de governo”.
Cracia, isto é, poder, autoridade.
Na semântica dos nossos tempos, esta palavra
encontrou atualidade em Rui, ao dizer: “A Pátria não
é ninguém, são todos; cada qual tem no seu
seio os mesmos direitos à idéia, à palavra,
à associação”. República é
assim a cidadania, a coisa do povo, o bem comum.
Inspirado num humanismo integral, o tomismo de
Jacques Maritain agrega ao tema uma valiosa contribuição
ao inocular no tecido da cidadania o conceito de valor, conferindo-lhe
um conteúdo ético pela defesa da liberdade de consciência,
sem desbordar no relativismo, e garantia da dignidade de toda pessoa
humana.
É com essa concepção que
se pode definir a política como ciência, virtude e
arte do bem comum.
Tudo assim concorre, na minha opinião,
para conferir, na estadística moderna, enquanto ciência
de Estado, a condição de homem público a todos
quantos, mesmo não havendo exercido função
pública ou disputado mandato eletivo, se tenham empenhado
no serviço do bem comum.
A vida pública, antes de ser uma profissão,
é e deve ser uma atitude de vida a exigir não o diletantismo,
mas, como propunha Nabuco, “o interesse vivo e palpitante
no destino e na condição alheia”.
Em abono desse entendimento, recordo palestra
de cunho autobiográfico de Affonso Arinos de Melo Franco,
na Universidade de Brasília: “O homem público
não é apenas (o grifo é nosso) o que participa
da vida pública no sentido de atividade política.
O homem público é o que exerce funções
ligadas à coletividade, o que inclui o professor, o escritor,
todas as formas de submissão da personalidade a um estilo
coletivo”.
Sem estar contaminado, imagino, pela “doença
da admiração” que, segundo o historiador Thomas
Macauly, afeta os memorialistas ao biografar vultos, desejo, sem
a pretensão de ineditismo ou de originalidade, destacar alguns
aspectos essenciais da estuante vida de meu ilustre predecessor,
Dr. Roberto Marinho.
Coerente com a observação anterior,
insisto em vê-lo como um homem público inserido na
gassetiana moldura das circunstâncias de nossos atribulados
tempos. Enfim, um cidadão republicano que vive o século
em parceria com o Brasil.
Teve no pai, e dentro da própria casa, o melhor dos paradigmas
– na síntese lapidar de Josué Montello ao recebê-lo
na Academia.
Irineu Marinho fundou em 1911 o jornal A Noite, que tinha sede no
Largo da Carioca, de cujo Conselho Diretor se retira em 1924. Ano
seguinte, lança, em duas edições diárias,
o também vespertino O Globo – nome, ressalte-se, escolhido
pelos cariocas no concurso “o batismo da simpatia popular”.
Seu pai falece vinte e quatro dias após o início da
circulação do jornal.
Roberto Marinho, revelando precoce maturidade, ao invés de
assumir as funções de Diretor como filho mais velho,
conforme apelo de sua mãe, prefere elevar à chefia
do jornal o Secretário de Redação Eurycles
de Matos, que permaneceu no cargo cerca de cinco anos. Quando este
faleceu, diz Franklin de Oliveira: “Roberto Marinho já
tinha o domínio completo do fazer jornalístico. Chegava
à redação às 4 horas da manhã
e só a deixava à noite. Conhecia profundamente todos
os segredos da profissão – do editorial ao flagrante
de rua, da grande reportagem à notícia mais singela
– além de dominar, com seu senso estético, a
produção gráfica do jornal, da diagramação
à tipologia”.
A palavra experiência possui em latim a
mesma raiz etimológica de perigo e de prova (por extensão),
como explicam os autorizados Ernout-Meillet, em seu Dicionário
etimológico da língua latina. Desde muito cedo, pois,
Roberto Marinho enfrentara riscos e desafiara incertezas e assim
acumulara uma boa porção do saber feito, o que muito
o ajudou a, camonianamente, entender essa estranha máquina
que se chama mundo.
Sua conduta parecia inspirar-se na sabedoria de
Fernando Pessoa, expressa através de seu heterônimo
Ricardo Reis:
“Para ser grande, sê inteiro, nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo um cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes”.
Dr. Roberto Marinho encarnava as três qualidades
designadamente importantes, segundo Max Weber, para definir a personalidade
do homem público: “sentido de responsabilidade”,
“senso de proporção” e “paixão”.
“Sentido de responsabilidade” manifestado ainda jovem
no batente do jornal; “senso de proporção”
por compatibilizar seus projetos com as aspirações
nacionais; e, finalmente, “paixão”, concebida
não como atitude interior que Jorge Simmel chamava de “excitação
estéril”, senão como entrega total, integral,
à causa que abraça. Paixão foi o que não
faltou ao Dr. Roberto Marinho!
Cidadão múltiplo, abrigava várias
pessoas em sua personalidade – o jornalista e o escritor,
o empreendedor, o amante da cultura e protetor da natureza, o acadêmico
e, por mais relevantes que sejam todos esses títulos, o homem
público, conquanto jamais haja diretamente desempenhado funções
governamentais.
Visão e capacidade de trabalho, coragem
e obstinação são qualidades ínsitas
no metabolismo dos grandes líderes. Tal como um dodecaedro
– figura geométrica de doze faces e que, simbolicamente,
exprime uma síntese perfeita –, a tudo isso aliava
Roberto Marinho sua excepcional vocação para conceber
e executar projetos, simultaneamente e em diferentes áreas,
a que se juntava um notável empenho em estabelecer enlaces
com todos e cada um.
Possuía o dom – perdoai-me a expressão
– de conglobar, a um só tempo, atividades e empreendimentos.
Mendès-France, primeiro-ministro da França,
cerca de cinco décadas atrás, ponderou lapidarmente
que “governar é escolher”. Essa regra de ouro
pontuava a competência gerencial do Dr. Roberto.
O seu empreendedorismo revela talento na seleção
dos projetos e sabedoria na escolha da equipe de auxiliares, recrutando-os
segundo critérios de competência e sem indagar vinculação
política, credo religioso ou convicção ideológica,
mesmo nos períodos mais agudos de censura à imprensa.
Ademais, delegava funções, mormente nas áreas
caracterizadas por especializados conhecimentos técnicos,
e abria espaço para o surgir de novos quadros, contribuindo
para ampliar e qualificar o mercado de trabalho nesse setor estratégico
das tecnologias do futuro, já incorporadas ao nosso tempo.
É de se observar que, ao longo de sua existência,
Roberto Marinho foi um antecipador, ao valer-se dos recursos que
o progresso tecnológico ensejava para expandir sua presença
na área da comunicação social.
Por exemplo, ainda na década de quarenta
do século passado e em plena Segunda Grande Guerra, Roberto
Marinho inaugurava uma emissora de rádio, então o
mais moderno veículo de difusão.
O mesmo ocorre na segunda metade do século
XX: ingressa na videoesfera, obtendo em 1957 concessão para
instalar uma emissora de televisão que vai ao ar em 1965,
embrião da futura TV Globo. A seguir, constitui uma rede
nacional e começa a exportar inicialmente produtos para a
América Latina.
As Organizações Globo, então
designadas por já incluírem jornal, rádio e
televisão, partem para o setor de discos e, através
de editoras, lançam livros e revistas especializadas –
Casa, Globo Rural, Galileu, Criativa, entre outras –, e em
1998, Época, dirigida para assuntos de múltiplos interesses.
Novos veículos da mídia gutenberguiana
passam a ser editados ou incorporados, como Extra e Diário
de São Paulo, ambos de circulação regional;
o jornal Lance para os desportistas; e o Valor, dedicado a assuntos
econômicos e negócios, em sociedade com a empresa que
edita a Folha de S.Paulo.
Permanentemente atento às inovações,
transpõe o território das tecnologias analógicas
para ingressar no mundo digital com a Globosat, programadora de
TV por assinatura; a Net Brasil, multioperadora de TV por assinatura
a cabo; Sky, TV por assinatura via satélite; e o lançamento
do Globo.com, portal das Organizações Globo na Internet,
entre vários outros empreendimentos.
É de se recordar que as suas empresas,
ao saírem da grafosfera para a videosfera, ajudaram a integrar
o País, até então um arquipélago, no
qual não se conseguia falar ao telefone senão com
dificuldade e um telegrama demorava dias para chegar ao destinatário.
Essa meta levou Dr. Roberto a dizer, no livro Uma Trajetória
Liberal: “Somos um país de dimensões continentais,
distribuído entre regiões distantes e distintas, ainda
que indissoluvelmente ligadas por uma quase milagrosa unidade nacional.
A era eletrônica veio fortalecer e aprofundar essa unidade.
Mais ou menos como em toda parte, o rádio e a televisão
no Brasil são hoje onipresentes. Constituem um traço
de união e contribuem, decisivamente, para a integração
nacional”. E mais: a qualidade da equipe e dos equipamentos
veio a permitir à sociedade brasileira desfrutar de comunicação
social de primeiro mundo para todo mundo.
A educação, questão ainda
não resolvida no Brasil, o que somente poderá ser
vencida geminando governo e sociedade, preencheu igualmente o universo
das aspirações cívicas de Dr. Roberto Marinho.
Citem-se, a propósito: a Fundação que ostenta
o seu nome, entidade privada sem fins lucrativos, com o objetivo
de atuar na área da educação, patrimônio
cultural e meio ambiente; a Globotec (Sistema Globo de Tecnologia
Educacional Ltda.), que produz vídeos educativos; o Telecurso
2º Grau e o Canal Futura, este dedicado 24 horas por dia, exclusivamente
ao campo da educação. Isto sem adicionar as campanhas
voltadas para a criança carente.
Seu interesse pela cultura – quer erudita,
quer popular – foi igualmente notável. Situarei entre
muitos que poderiam ser aqui feridos, um ponto que contribuiu também
para melhorar significativamente a nossa imagem no exterior: a dramaturgia.
Ninguém desconhece que as novas técnicas de espetáculo
e o aparecimento do cinema e da TV foram fundamentais para a renovação
da linguagem cênica e dramatúrgica. O espetáculo
libertou-se do palco e transcendeu a ação linear.
O espaço que a TV Globo ofereceu ao autor,
diretor, elenco, técnicos, enfim a todos nesse setor, foi
fundamental. Processou-se uma revolução na telenovela
brasileira, atingindo padrões de elevada qualidade, tanto
de texto, quanto de imagem.
Essa calculada ousadia de Dr. Roberto Marinho fez
brotar no Brasil uma nova dramaturgia, que encontrou seu ápice
nos casos especiais e seriados. De mais a mais, as novelas, que
chegaram a mais de cem países, deram enorme projeção
ao Brasil.
Em visita oficial à China, representando
o governo brasileiro, ouvi de professores e estudantes da Universidade
Fudan comentários comovedores de nossa história que
tomaram conhecimento através de novelas como Escrava Isaura.
Infenso ao solilóquio, Dr. Roberto sabia
cultivar o diálogo, sempre presto para ouvir e somítico
no falar, pois se “viver é a arte do encontro”,
como versejou Vinícius de Moraes, nenhum projeto coletivo
de largo espectro dispensa a parceria entre empresa, sociedade e
governo.
Intuíra, também, que fazer o Brasil passageiro do
cometa da globalização, ainda que assimétrica
e insolidária, pressupunha posicionar suas empresas no exterior,
e ocupar nichos para competir mundo afora e assim levar a nossa
mensagem aos quatro sóis.
A percepção que hoje se tem do Brasil
é quantitativamente maior e sobretudo qualitativamente superior
à de trinta anos atrás, mormente no plano cultural,
onde se revelam a criatividade e o talento de uma nação
multiétnica, diversa na sua unidade e rica na multiplicidade
de suas manifestações artísticas. Isso tanto
é mais importante por entendermos que os valores se alojam
no território da cultura e embora sejam permanentes não
dispensam contínuo aggiornamento.
Participantes da virada de um milênio –
e as datas inaugurais prestam-se a reflexões e até
bizarros exercícios de futurologia –, experimentamos
nos pródromos do século XXI o desconforto de uma grande
aceleração histórica, a gerar interposição
entre passado, presente e futuro.
Dr. Roberto Marinho não ficou com os olhos
fixos no presente. Com as retinas do humanista anteviu a necessidade
de colaborar na preservação da nossa memória,
especialmente “daquele passado que fica do que passou”,
como dizia Tristão de Athayde. De igual modo, usou o periscópio
para, em mar revolto, enxergar o futuro.
Devo também registrar o seu engajamento
no intercâmbio com todos os países da América
Meridional, que se espera venha a institucionalizar-se através
de uma comunidade sul-americana de nações.
Em obra autobiográfica, De Gaulle tece
considerações a respeito de uma “certa idéia
da França” que constituíra a razão de
ser de sua vida. Transladando, o mesmo se poderia aplicar a Roberto
Marinho. Uma certa idéia do Brasil também o afligia.
A pátria, com suas virtudes e vicissitudes, era tema recorrente
em seus pronunciamentos e conversas. Não seria exagero admitir
ter consumido grande parte do tempo nessas inquietações,
o que afiança sua sensibilidade para a política, entendida
como caminho para converter os sonhos possíveis em realidades
tangíveis.
Otto Lara Resende, vide O Príncipe e o Sabiá,
conta que Guimarães Rosa sugeria aos amigos: “não
faça biscoitos, faça pirâmides”.
Preconizava o mestre de Grande Sertão e
Veredas que o escritor devia concentrar-se, condensar-se, viver
monacalmente para a sua grande obra, preparar-se longamente para
ela e pôr-se ao trabalho sem hesitação ou fadiga.
Roberto Marinho foi em toda sua existência um obstinado construtor
de pirâmides.
Talento de empreendedor, perseverante e indene
ao medo, consciente da imprescindibilidade de atingir metas colimadas,
como afirmou Ortega y Gasset ao desenhar os traços biográficos
de Mirabeau, “parecia saber-se dotado de alicerces subterrâneos,
de invisíveis raízes que sustentam o gigantesco organismo
de um grande político”.
Prova-o haver levado ao ar a TV Globo aos 61 anos,
já na denominada terceira idade, tendo para esse fim hipotecado
todos os seus bens, incluindo aí a própria casa do
Cosme Velho.
Criou a Fundação Roberto Marinho
aos 78 anos e até então – pasmai! – participou
de concursos hípicos, deles só se afastando após
uma queda da qual lhe resultaram costelas quebradas.
Aos 87 anos, casou-se com D. Lily, a quem tão
apaixonadamente amou.
No mesmo ano, depois de incorporar emissoras de
rádio em todo o País, criou, iniciativa sem precedentes,
a CBN (Central Brasileira de Notícias). Aos 90 anos inaugurou
o Projac (Central Globo de Produção de Televisão)
e aos 93, começou a construir o maior parque gráfico
da América Latina, concluído em 1999.
Como mais uma demonstração de sua
vitalidade e flama – permiti-me aditar breve testemunho: ao
completar 90 anos, foi Roberto Marinho homenageado por amigos em
jantar oferecido por D. Lily, filhos, noras e netos. O encontro
se prolongou até alta madrugada. Ao saber que pretendia participar
dia seguinte do lançamento de livro de Vargas Llosa, em São
Paulo, ofereceu-me uma carona, em seu avião. No retorno ao
Rio de Janeiro, próximo da meia-noite, após haver
ficado obviamente insone o dia anterior pelos festejos do aniversário,
convidou-me a ir à redação do O Globo.
Entrou pela oficina, não surpreendendo seus
funcionários, o que pareceu senão uma rotina, ao menos
algo freqüente, e entregou-me o exemplar da edição
dominical que circularia horas depois. Restou-me, também
a Anna Maria que acompanhava D. Lily, a convicção
de que sua nonagenária juventude subsistia na permanente
capacidade de haurir do dever o prazer e de, após um dia
de labor, regressar a casa confortado por haver oferecido sua cotidiana
porção de trabalho para melhorar o País.
Homem público não por opção,
mas por sentimento de brasilidade, não sei se Roberto Marinho
desperta mais admiração que simpatia. Porém
ninguém recusa identificá-lo como uma celebridade
nacional, cujos dedos colocados construtivamente nos aros da história,
desataram novos paradigmas e alargaram as fronteiras do processo
de desenvolvimento sócio-político, econômico
e cultural do País.
Senhor Presidente,
A Roberto Marinho se pode aplicar a frase de Terêncio:
“nada do que é humano me é estranho”.
(homo sum, humani niihil a me alienum puto).
Gostava de ler, ir ao cinema, teatro e ópera.
Em entrevista a José Mário Pereira considerou que
“a literatura é o retrato de um povo, de uma nação”.
Machado de Assis, dizia ele, tanto no romance, quanto na crônica,
documenta a história do Brasil e do Rio de Janeiro. Lembrou
que sua geração fora educada sob o signo da literatura
francesa – Balzac, Anatole France, Flaubert. Apreciava Dickens,
de modo particular As Aventuras do Sr. Pickwick, livro para ele
“cheio de lances pitorescos e divertidos”, o que confirma
possuir o romancista inglês, segundo seus biógrafos,
poderes de hipnotizar leitores e ouvintes.
Deixou, além de rica biblioteca, mais de
600 telas, cuja coleção iniciou, ainda solteiro, constituída
basicamente de artistas plásticos nacionais, inclusive do
amigo Portinari, de quem freqüentava o ateliê. “Gosto
da Arte da Renascença, mas também admiro imensamente
os modernos... Vejo muita criatividade na pintura brasileira de
hoje”, afirmou.
Em depoimento no projeto Memória, da TV
Globo, falou de suas preferências, especialmente na música
erudita, e revelou satisfação de haver assistido a
muitos concertos, mencionando óperas de Verdi, Rossini e
Puccini, entre outras.
Esportista, lutou boxe na juventude e praticou,
por quase toda a vida, o hipismo, além de participar de regatas,
uma delas com Nelson Rodrigues, afora caça e mergulho submarinos.
Talássico, ensinou: “foi o mar que
me deu uma das ricas experiências de vida: a de saber enfrentar
os desafios com a firmeza dos fortes e a serenidade dos sábios”,
do que se deduz comportar-se de acordo com a parêmia latina:
“fortiter in re, suaviter in modo” – firme nos
objetivos, e suave no trato.
Exerceu, por essas razões, um papel mais
saliente na vida nacional do que muitos próceres políticos
e líderes da comunidade.
Otimista, exalava confiança e ao seu nome
se associava a certeza do sucesso. Alias, “condenado ao êxito”
era o título que escolhera para sua biografia, que não
chegou a escrever. Dr. Roberto, portanto, se identificava plenamente
com a alma nacional: o nosso povo, apesar de tantos padecimentos
que o estigmatizam, tem como traço positivo de seu caráter,
algo singular no mundo: não se deixar dominar pelo sentimento
de revolta ou abater-se pelo desânimo; não lhe falta
humor, irreverente nunca grosseiro, e jamais destila o fel do pessimismo.
Por conseguinte, seu nome não sairá da consciência
coletiva de nossa gente, nem será encoberto pelas névoas
do esquecimento.
“A morte – sentenciou Rui Barbosa
– não extingue: transforma; não aniquila: renova;
não divorcia: aproxima”.
O sentimento que se tem, após sua morte,
é o de que, quanto mais longe do seu desaparecimento, mais
cresce sua exuberante figura, ornada pela sua obra.
De Roberto Marinho se pode afirmar, repetindo
Carlos Drummond de Andrade, in Rosa do Povo (Resíduo):
“De tudo ficou um pouco
...
Ficou um pouco de luz”.
Luz para fazer memória de sua vida e, ao
mesmo tempo, sinalizar em fulgurante rota a continuidade de sua
obra.
A seus filhos – Roberto Irineu, João
Roberto e José Roberto –, que assumiram a missão,
a um só tempo árdua e estimulante, sei que não
faltará a nabuquiana “provisão de sol interior”
para prosseguirem sua obra, sem pressa nem descanso, no pacto que
tornaram público, em editorial em O Globo, dia seguinte a
sua morte:
“...com ele aprendemos a lição mais importante:
a obra de Roberto Marinho partiu de um ideal dele, mas só
pôde ser concretizada porque foi o resultado de uma aliança
entre jornalistas, artistas, escritores, profissionais da cultura
e o povo brasileiro. Não somente preservar, mas ampliar essa
obra é o nosso compromisso. E ela será ampliada, não
apenas porque este é o nosso desejo, mas porque pretendemos
manter intacta esta aliança que a originou. Esta é
a nossa intenção, esta é a nossa determinação,
este é o nosso compromisso”.
Esta Casa pode gloriar-se, portanto, de haver
admitido Roberto Marinho como um de seus preclaros confrades e,
de modo particular, me vanglorio de sucedê-lo.
Senhor Presidente,
A Academia Brasileira de Letras, templo de preservação
do idioma, promove o constante alevantamento da literatura nacional,
zela pela memória de nossa cultura e, se conosco estivesse,
nestes tempos de globalização, Machado de Assis estaria
agora regando, na última flor do Lácio, as raízes
da nossa latinidade.
Getúlio Vargas, ao ser admitido nesta Instituição,
considerou-a “uma espécie de judicatura mental do País,
preparando uma atmosfera de interesse e de respeito pelas criações
intelectuais , estimulando as vocações e facilitando-lhes
o acesso às fontes de revigoramento e renovação
espiritual”.
Aqui também já se rememorou, em
outra oportunidade, haver Pellison, o primeiro historiador a ter
assento na Academia Francesa, que nos serviu de inspiração,
comparado seus membros a “operários a trabalharem na
exaltação da França”.
Não tem sido outro o múnus deste
Sodalício.
Tradição e criação
– características de um povo –, esta a renovar
aquela, marcam esta Academia, e aqui estou, consciente de que sem
a participação de seus membros nada se construiria,
mas também nada pervadiria o tempo sem a força da
Instituição.
Mercê do idealismo de seus sucessivos dirigentes
e integrantes, a ABL desenvolve inúmeras ações,
algumas pouco conhecidas conquanto de enorme significação,
na difusão do saber literário do País. Promove
também o intercâmbio com a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa e povos de outras falas e culturas.
Agradeço haverdes designado o Acadêmico
e Ministro Marcos Vilaça, amizade dos longes da minha infância
abrasada com o selo da conterrania, e a quem tanto admiro, para
acolher-me nesta noite marcada pelo sotaque pernambucano.
Manifesto meu reconhecimento também aos
conterrâneos que nesta Casa nos precederam, cujas memórias
vivas agora recordo no patrono Maciel Monteiro (médico, jornalista,
diplomata, político, orador e poeta) e nos fundadores Joaquim
Nabuco (político, diplomata, orador, poeta e memorialista),
Oliveira Lima (historiador, escritor e diplomata), Medeiros e Albuquerque
(jornalista, professor, político, contista, poeta, orador,
romancista, teatrólogo, ensaísta e memorialista) e
Silva Ramos (professor, filólogo e poeta), seguidos pelos
acadêmicos Martins Júnior (jornalista, advogado, jurista,
político, professor e poeta), Sousa Bandeira (advogado, professor,
ensaísta e diplomata), Artur Orlando (advogado, jornalista,
político, jurista, crítico literário e ensaísta),
Dantas Barreto (historiador, marechal-de-exército, jornalista,
romancista e teatrólogo), Antônio Austregésilo
(médico, professor e ensaísta), Adelmar Tavares (advogado,
professor, jurista, magistrado e poeta), Olegário Mariano
(poeta, político e diplomata), Celso Vieira (biógrafo,
ensaísta e historiador), Múcio Leão (jornalista,
poeta, contista, crítico, romancista, ensaísta e orador),
Barbosa Lima Sobrinho (advogado, jornalista, ensaísta, historiador,
professor e político), Manuel Bandeira (professor, poeta,
cronista, crítico e historiador literário), Antônio
Carneiro Leão (educador, professor, administrador e ensaísta),
Álvaro Lins (professor, jornalista, crítico literário,
ensaísta e diplomata), João Cabral de Melo Neto (poeta,
escritor e diplomata), Mauro Mota (jornalista, professor, poeta,
cronista, ensaísta e memorialista), que ao longo da história
contribuíram, como hoje o fazem Marcos Vilaça (advogado,
professor, escritor, ensaísta e Ministro do Tribunal de Contas
da União) e Evanildo Cavalcante Bechara (escritor, professor
e filólogo), todos no evoluir da história aureolando
esta Casa.
Menção especial ao caruaruense Austregésilo
de Athayde, jornalista, professor, orador, cronista e Delegado do
Brasil à Assembléia Geral das Nações
Unidas, realizada na França em 1948, que aprovou a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, para a qual colaborou. A ele o
reconhecimento pelo longo e sobretudo fecundo exercício na
Presidência desta Casa, em que serve de inspiração
a seus pósteros.
Senhor Presidente,
A pátria começa no solo onde se
nasce. O humano é um animal telúrico e por mais universal
que seja a vocação de cada um, é no arrocho
do berço que buscamos inspiração para agir
e força na adversidade.
Perpassado de emoção – glória
que jamais teriam sonhado os mais elevados devaneios de infância
–, aqui estou num dos momentos mais fascinantes de minha vida,
envergando o fardão, ostentando o colar e empunhando a espada.
Mas não sem saudade, saudades muitas. De minha mãe,
Carmen Sylvia, sempre presente na memória e no coração,
e de quem recebi total afeto e permanente estímulo. Dos idos
no velho casarão do Colégio Nóbrega, onde menino
comentava as vitórias do meu Santa Cruz, sob os apartes dos
torcedores do Náutico e do Esporte; onde os jesuítas
inculcaram, juntamente com meus pais, formação intelectual
e sólida fé cristã.
Saudades dos tempos dos bancos universitários da tradicional
Faculdade de Direito, a Casa de Tobias Barreto, o fundador da Escola
do Recife e especialmente da minha turma de 1963, cujo Patrono,
o Papa João XXIII, na encíclica Pacem in terris, afirmou:
“A paz será uma palavra vazia de sentido se não
se fundar na ordem: ordem fundada na verdade, constituída
na justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada
sob os auspícios da liberdade”. Ao lado dos estudos,
recordo toda uma geração dos tempos da política
estudantil no Diretório Acadêmico, no DCE da Universidade
Federal, na UEP e, em menor escala, na UNE.
Depois de breve exercício do magistério,
a vida pública, mais pública do que vida, à
qual me consagrei integralmente, como a um sacerdócio.
A política sem o desconfiar, o meu endereçamento
futuro, era o ar que respirava em casa, haurindo lições
probas e lúcidas de meu pai, José do Rego Maciel,
das quais ainda venturoso desfruto.
Alegro-me parafrasear Norberto Bobbio: considero-me
um homem de sorte. Sorte pela família na qual nasci. Sorte
pela família que Anna Maria e eu construímos, mais
méritos de minha mulher do que meus. Sorte pelos professores
que tive, pelos amigos que tenho e também por ter nascido
no Recife, tesouro dos meus sonhos. Sorte por esses anos aos quais
chego, limado pelo tempo, mas plenamente motivado para exercitar
a conviviabilidade acadêmica.
Por fim aprendi que não se pode –
porque não se deve – refugir ao destino.
Fata viam invenient – o destino encontrará
seu caminho –, dizia Virgílio em sua Eneida. Não
se trata de fatalismo ateu, nem politeísmo, pois esclareceu
Santo Agostinho, em De Civitate Dei, que o destino coincide substancialmente
com a vontade do próprio Deus.
Espero, finalmente, nesta Casa continuar honrando
as tradições de Pernambuco, que irrigou com o sangue
de heróis e mártires as virtudes cívicas de
nossa gente. Tenho, por isso, orgulho de ser parte desta herança
que legamos ao Brasil e a ela tenho buscado ser fiel, pois, para
mim, como reza o hino de nosso Estado, Pernambuco é “um
sol a brilhar no infinito”.
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