Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
agosto de 2001
Nós e a história
Enquanto espero
Uma criança morreu na esquina.
Foi atropelada pelo trem de ferro?
Não. Morreu de fome abandonada.
Estava escrito. Era sua sina.
Escrevo eu seu obituário.
Sou apenas o escriba.
(Três em Um - Douglas Mondo - 1999
- Editora Poesia Diária)
Cabe à imprensa registrar o fato, sem interferir, dimensionando-o
na exata proporção do acontecimento. Se ao final
a imprensa o noticiou, o fato, de fato, aconteceu.
Ao contrário, se a imprensa não noticiou, o fato
não aconteceu.
A imprensa, aqui como acolá, não mais noticia a
morte de uma criança em uma
esquina qualquer, e elas morrem aos milhares de fome e abandonadas
por nós
adultos com a desculpa que são "responsabilidade do
governo".
Cabe ao governo governar e a nós povo, votar.
O sufrágio universal é o maior direito democrático
de um povo, pois é dele a escolha de quem o governa.
Todos os dias, em todos os cantos da Terra, governantes eleitos
democraticamente, governam com mãos ditatoriais e em nome
de uma democracia
representativa lançam planos eleitoreiros aumentando cada
vez mais a distância social que separa ricos de pobres,
com a inevitável morte de milhões de seres humanos.
E nós, esperamos.
A justiça dos homens é falha. Justa, é a
justiça de Deus!
"Ó Senhor, perdoai as nossas ofensas, assim como
perdoamos a quem nos tem
ofendido e nos livrai do mal, amém".
Todos os dias, em todos os cantos da Terra, a justiça
dos homens castiga pobres e excluídos sociais, lançando-os
no rol dos culpados pelos crimes cometidos contra o efeito, já
que a causa é coisa de Deus e não responsabilidade
dos homens.
Assim, caminha a humanidade! E nós, esperamos.
A norma culta brasileira afirma que o verbo ter não deve
ser usado com sentido de haver, quando se referir ao verbo existir.
E mais, todos nós sabemos que "eu faço"
e "mim não faz".
Três gênios da cultura brasileira subverteram regras
rígidas da nossa língua e nos ensinaram que a interferência
humana cria novos mundos, com novas sensibilidades, e o resultado
final não nos deixa mais esperar na esquina pela morte
da criança abandonada.
Não será mais sua sina.
O Mestre Drummond nos ensinou que "no meio do caminho tinha
uma pedra, tinha
uma pedra no meio do caminho".
O maior letrista brasileiro vivo, Chico Buarque de Holanda, nos
agraciou com "Têm dias que a gente se sente como quem
partiu ou morreu".
E o célebre poeta do sertão imortalizou o retirante
que não mais beijou o sol nordestino que queima a alma
cabocla, em versos de esperança e aflição
cantando "Hoje longe muitas léguas, numa triste solidão,
espero a chuva cair de novo pra mim vortá pro meu sertão".
Em aparente fadiga diante do inevitável, três poetas
ousaram e nos mostraram que é possível ir além
do pré-estabelecido, além das rígidas regras,
já que mudar, quando é mais fácil aceitar,
vai além das palavras, vai além da indignação.
Já não posso mais esperar, o peito aberto clama
por ação.
O tempo nos ensinou que a morte não é o fim digno
a justificar os meios que
canalizam a ação prática, pois por si só
ela é morte como qualquer outra. Não há dignidade,
nem romantismo na morte. Apenas ela, fria e vazia.
É preciso ousadia, criatividade, inteligência, subverter
a ordem de maneira a resgatá-la, em versos, em prosa, nos
escritórios, nas praças, nos quartéis, nas
esquinas defronte às bancas que vendem jornais.
Dos poetas, seus versos contra rimas pobres; dos jornalistas,
suas investigações interferindo contra as notícias
podres; da igreja, suas rezas em mãos de enxadas contra
as mãos altivas espalmadas; das participações
populares contra políticas partidárias viciadas;
dos homens ativos contra homens passivos que de joelhos dizem
amém e mais nada.
E nós, não mais esperamos. A vida não espera.
Douglas Mondo
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