Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  maio de 2001

FINGE QUE É VERDADE

Finge que ainda é abril, as tardes são leves azuis mornas e descansadas, apenas carneirinhos brincando de nuvens no céu, ainda é começo, não houve tempo pra mágoas, nem rancores, nem tantas despedidas tolas apressadas, finge que ela voa livre, andorinha em ventos de verão, e ri da joaninha que fez do cogumelo um guarda-chuva pra se abrigar do temporal no seu jardim, finge que ela ainda tem um jardim, finge que ela não está embaralhada na trama de todas as suas saudades, ela que finge que esqueceu tudo, ela que não se conforma com as palavras que esqueceu de dizer, que fica repetindo o que não disse, não era pra acabar assim, não era, não era, ela não se conforma e teima, finge que ela não se confunde em lembranças, aquela manhã, Veneza transformando-se em um monte de neve pela janela fria do trem aconteceu mesmo? quem pegou na minha mão?, finge que ela não engole todos os seus sonhos mais os sapos todos e que eles não descem sem rumo arranhando e queimando corpo adentro, finge que ela não se entope do tédio que ficou no seu lugar, quem vai fechar a tampa do meu caixão?, por favor, alguém há de se lembrar que ela não quer flores porque tem pavor de espinhos, finge que ela não tem medo de alma do outro mundo, passa batom para esperar todos os
seus fantasmas, eles chegam pontualmente todas as noites, alguns deles convidam-na pra dançar e ela dança, a solidão faz dessas coisas, finge que ela não está morrendo, não está chorando, não tem medo, não está se debatendo enclausurada no seu casulo lagarta, sufocada de tanto ser provisória, finge que ela existe, abre a sua janela e deixa que eu pouse borboleta nos seus ombros, leve como era no princípio, quando ainda não dissemos o tal verbo, finge que vai ser tudo igual.

Silvana Guimarães

« Voltar