Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
maio de 2001
Depoimentos Literários
Memórias
UM GESTO DE PAIXÃO
Nunca esquecerei
de uma senhora que conheci há muitos anos atrás. Foi uma
das mulheres mais bonitas que conheci. Embora fosse bastante velha (já
passava dos setenta), ficava admirada de seus extraordinários e
belíssimos traços. Questão genética, claro.
Sempre ficava pensando como deveria ter sido bonita na mocidade.
Eu era muito
garota e ficava deliciada ao ouvir suas esplêndidas histórias.
Tocava piano maravilhosamente e mesmo tendo tanta gente moça por
perto encantava pelo seu espírito singular, inteligência brilhante
e o dom raro de fascinar as pessoas pela natural vivacidade. Poderia ficar
horas ouvindo-a sem me cansar e não raras vezes lhe pedi que repetisse
os casos já sabidos. Havia tanta espontaneidade e graça em
seu modo de relatar que era sempre como se o fizesse pela primeira vez.
Várias
vezes a vi em Copacabana empurrando um carrinho de nenê que carregava
em suas compras de legumes na feira (naquele tempo havia muitas feiras
no meu querido Rio de Janeiro). E quem a visse simplesmente fazendo compras
tão comuns não poderia imaginar que talento especial tinha
para a música. Era uma artista e uma pessoa invulgar.
Nas tardes de
domingo, costumava reunir uma turma gostosa (morava em Botafogo) para bater
papo, lanchar, jogar cartas descompromissadamente e tocar piano. E quem
mais apreciava essas reuniões sedutoras eram os mais jovens. Lá
ao som do instrumento preferido de Deborah (todos a chamavam pelo primeiro
nome), tínhamos gente agradável reunida. Pessoas com inclinações
variadas desde escritores e músicos às ocupações
mais prosaicas.
Certo dia que
jamais me sairá da memória encontrando-a casualmente convidou-me
a ir até sua casa. Estava deprimida e não poderia negar um
pedido tão especial de Deborah num momento difícil. Na verdade
ela era amiga de minha avó, mas seu gênio saltitante e quase
juvenil a aproximava dos amigos de seus netos. E a amei sempre e muito.
Ela estava naqueles dias de tormento d'alma em que as recordações
incomodam.
Falou-me então
de seu marido e do quanto sentia saudades. E até isso ela fazia
bem a ponto de conseguir que as pessoas quisessem ouvi-la. Perguntei-lhe
como tinha sido seu remoto namoro, certa de que ia ouvir algo interessante
o que realmente aconteceu. Dissertou-me então o fato que até
hoje recordo e consigo rir agradavelmente de seu jeito suave e natural.
Na sua época
as moças casavam com rapazes escolhidos pela família. Assim
fizeram com Deborah e ela sentia raiva daquele jovem bem mais velho e pelo
qual não sentia nenhuma atração. Diversas vezes se
revoltara dizendo claramente que jamais casaria com ele. Chorava de ódio
pela sua presença indesejável. Uma manhã ele chegou
em sua casa e a mãe pediu que ela levasse uma bandeja para servir-lhe
o café. Depois de suplicar à mãe para não fazê-lo
resolve obedecer compulsoriamente. Ao vê-lo ficava fora de si e sem
querer deixou inadvertidamente a colherinha cair e o rapaz abaixou-se
para apanhá-la. Ela contava com uma graça suprema que no
momento que ele fez esse gesto de abaixar-se, algo aconteceu e ela apaixonou-se
perdidamente por ele durante quarenta anos, ou seja, até Dr Geraldo
morrer. Não sabia que fenômeno ocorrera, porém tudo
o que ansiava daquele momento em diante era ficar ao lado dele para sempre.
Seguidamente
lembro-me dessa excêntrica história que achei interessante
e que já revelava em sua essência os efeitos de um gesto,
uma palavra, um ato ou de um sorriso na psicologia das pessoas.Uma reação
subjetiva, porém profunda. Totalmente inexplicável como muita
coisa que acontece em nossas vidas. E que transmitida por Deborah me comoveu
sem, contudo concluir nem por um momento que ela tivesse inventado. Todos
sabiam como sua vida e personalidade eram ricas e que não precisariam
de palavras que não fossem absolutamente verdadeiras. Aquilo me
tocou num misto de hilaridade e deslumbramento.
Vânia Moreira Diniz |