Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
novembro de 2001
Sátira:
O dia em que Anacleto morreu
Ninguém sabe, ninguém viu. Anacleto morreu de repente.
Era um dia qualquer, ensolarado e quente.
Anacleto era desses sujeitos comuns. Quase não saia de
casa. Solteiro, gostava de assistir aos domingos futebol pela
televisão, principalmente os jogos de seu querido "Timão".
Sabia a escalação na ponta da língua. Era
seu trunfo intelectual. Seu porto seguro do saber.
Deitava-se no sofá surrado pelo tempo, em que mal cabia
seu corpo longo e magro e ali babava pelo seu "Curingão".
A cada gol, socava o ar com cumplicidade quase infantil.
Esse era Anacleto. Aposentado desde a época do antigo
IAPI. Ganhava um salário mínimo por mês, que
mal dava para pagar o aluguel de seu barraco de madeiras coberto
por telhas de zinco.
No calor era o inferno sobre a Terra.
Poucos sabiam, mas Anacleto tinha um grande amigo: Dr. Jofre
Soares de Mello e Silva, advogado de renome, filho pródigo
da família "Mello e Silva", "quatrocentona"
da capital.
Vez ou outra, ele recebia a visita de seu amigo que fazia questão
de chegar de táxi para não chamar a atenção,
trazendo apenas uma velha pasta debaixo do braço.
Como essas visitas se repetiam ano após ano, ninguém
estranhava mais. E Anacleto dissera aos curiosos que era um primo
distante que vinha lhe visitar.
Pronto, acabara a curiosidade.
Dentro do barraco, às escondidas do mundo, Anacleto assinava
uns papéis que Dr. Jofre trazia, com aquela letra meio
tremida, sem se importar em saber de que se tratava, pois se contentava
com um pouquinho de prosa que trocava nessas horas.
O Dr. Jofre nem mais satisfação dava, chegava com
aquela fala mansinha e pedia quase em tom de ordem: Anacleto assina
aqui no xis.
Ele assinava e trocava aqueles dois dedinhos de prosa e pronto,
ficava todo "sastifeito o resto da semana". Tinha proseado
com seu amigo "dotô".
Um dia, já doente, Anacleto recebeu a visita de um sobrinho
que não via há muito tempo, também advogado,
que trazia na lembrança o colo e os afagos de Anacleto.
Lembrava-se, quando ainda garoto, do colo do tio e ao passar
as mãos no rosto de Anacleto, sentia suas barbas como espinhos
a lhe cutucar os dedinhos de sua infância angelical.
Lembrava-se das risadas do tio, fortes e contínuas. Era
uma imagem bem forte em sua memória.
No dia anterior, Dr. Jofre estivera no barraco de Anacleto e
após aquela rotina enfadonha, esquecera sobre o surrado
sofá alguns papéis já assinados e provavelmente
voltaria para buscar.
O sobrinho de Anacleto não segurando a curiosidade, ao
examinar os papéis ficou estupefato com o que estava vendo.
Seu tio, inocentemente, era laranja de um político famoso
da capital que havia sido governador do estado e Jofre Soares
era seu advogado e controlador das contas no exterior.
Anacleto era titular em todas elas. Movimentava milhões
e milhões de dólares sem saber.
De repente, o sobrinho de Anacleto num pensar surrealista teve
uma grande idéia.
Pegou todos os papéis e levou seu tio para um lugar escondido.
Longe das
garras de Jofre Soares e seu chefe corrupto.
Durante vários meses o ex-governador e seu advogado tentaram
encontrar Anacleto, procurando por inúmeras cidades e em
casas de parentes, não logrando êxito em tal empreitada.
O desespero tomou conta de ambos e de seu comitê de campanha,
já que não era possível movimentar um centavo
daquela fortuna toda e as eleições para governador
estavam se aproximando. Precisavam de dinheiro para a nova campanha
política.
Num dia qualquer, ensolarado e quente, a quadrilha recebeu uma
triste notícia: Anacleto tinha morrido de repente.
E mais, ficaram sabendo por conta do tabelião da cidade,
que Anacleto tinha deixado um testamento. Toda sua fortuna, quase
duzentos milhões de dólares depositados em paraíso
fiscal, seria distribuída para as casas de caridade de
toda região, que assim poderiam fazer o bem sem olhar a
quem.
Ninguém sabe, ninguém viu. Apenas um político
safado, louco da vida, gritava a plenos pulmões:
"Jofre Soares, seu morfético, vá pra p...!"
Douglas Mondo
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