Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  novembro de 2001

Aí vai um conto, minha contribuição ao Dia 25, da Não-Violência contra a Mulher

A FESTA

Letícia tinha ido ao cabeleireiro, feito as unhas e uma escova caprichada. O vestido novo estava pendurado fora do armário, os sapatos ao pé da cama e a bolsa sobre ela, já com todo o conteúdo necessário: batom, lencinho, pó facial. Fazia tanto tempo que não saía à noite! Finalmente, havia surgido uma ocasião.

É bem verdade que se tratava de uma festa beneficente, num clube português com direito a danças típicas e todo o pessoal do trabalho em volta. Só assim, por questões profissionais, Gilberto saía da toca. Do contrário, chegava em casa, tirava os sapatos, ligava a televisão e esperava o jantar. Nem precisava pedir seu drinque, já trazido de bandeja como parte da rotina. Mal Letícia acabava de servir a refeição e se sentava à mesa, ele já havia deglutido tudo e voltado à poltrona, controle remoto na mão.

Bem, mas aquela noite ia ser diferente. Quem sabe, até, não rolava um pouco de romance?... As relações andavam tensas, ainda por cima agravadas pelo fato de Lúcia, irmã de Letícia, fazer-se presente demais na tentativa de assistir o casal em crise - atitude interpretada por Gilberto como animosidade contra ele que, logo ao chegar em casa, disparou a primeira ducha fria no entusiasmo da esposa:

— Meu bem, a gente não vai demorar muito lá, viu? Estou cansado.

Saiu a briga inicial, tendo Letícia expressado sua frustração e sido acusada de ingratidão, como sempre. Na festa, Gilberto hostilizou Lúcia abertamente e honrou a ex-amante, até fazer com que a esposa não conseguisse conter o pranto público e avisasse que ia embora.

— Mulher minha só sai daqui comigo!

Revoltada e morta de vergonha pela própria choradeira, ela o desafiou e foi para casa com Lúcia. Mal havia entrado na portaria do edifício, Gilberto chegou com um amigo que lhe havia dito durante toda a viagem:

— Tem mais é que bater mesmo, uma mulher dessas merece apanhar!

Gilberto entrou falando manso:

— Letícia, como é que você me deixa assim, no meio duma festa?...

Ato contínuo, agarrou-lhe os cabelos, derrubou-a no chão e começou a bater-lhe no rosto de punho fechado. Em meio a ofensas, dizia que ia desfigurá-la. Dor, a mulher não sentia, talvez pelo tamanho da surpresa. Percebeu, porém, que a coisa não tinha hora para acabar e, em pânico, gritou - um desses gritos sem palavras, de filme de terror.

Lúcia e o amigo-conselheiro de Gilberto ainda não estavam longe e voltaram correndo para acudir. A ira do homem ultrajado voltou-se então contra a cunhada, que foi derrubada no sofá e recebeu chutes no nariz. O amigo também saiu esfolado, por ter tentado acalmar os ânimos.

Terminado o serviço, Gilberto subiu para o apartamento. O amigo foi atrás e, depois, ficou indo e vindo, tentando promover as pazes a pedido do agressor arrependido. Apesar da insistência de Lúcia, Letícia não quis ir à polícia, mas ameaçou fazê-lo caso o marido não saísse de casa imediatamente, deixando-a em paz com os filhos, no que foi atendida. Nos dias subseqüentes, ela foi a médicos, fez radiografias, usou colírios para não ter descolamento de retina, expeliu postas de sangue pelo nariz, recusou flores e trocou as fechaduras.

Ainda de olho roxo, foi a um advogado tratar da separação. O causídico convenceu-a a fazer o que ela mais temia: aceitar um encontro com Gilberto em seu escritório e em sua presença. Estavam abertos o precedente e a brecha para futuros contatos, sempre "por causa dos filhos". Vieram convites para tantos jantares românticos como ela nunca tivera durante o casamento. Compras em butiques caras, salamaleques, demonstrações de amor e de humildade e ela pensou:

— Oh, ele mudou!

Viu um futuro cor-de-rosa à sua frente e voltou. Nunca mais apanhou. E ainda demorou muitos anos para perceber que a pior forma de violência empregada por Gilberto não era a física, mas sim aquela que a tornara tão vulnerável, a ponto de alguém sentir-se no direito de espancá-la, e condescendente o suficiente para relevar a agressão. Então, sim: a faísca brilhou e Gilberto dançou.

Beijos ficcionais, porém não fictícios,
Emi

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