Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
novembro de 2001
Muito além da emoção
Saí para mais uma visita à periferia da cidade
de Brasília, já me entristecendo pelo que poderia
ver. Andar de carro por aquela região nos dá um
sentimento de quase total impotência, como se estivéssemos
com as mãos atadas. É lastimar porque estamos sentados
com tanto conforto, enquanto pessoas tão merecedoras como
nós estão ali, cansados a esperar uma condução,
na maioria das vezes viajando em pé e mesmo assim pagando
uma quantia pequena e que, no entanto fará falta.
Quando cheguei verifiquei que devia ser uma rua das mais pobres
da região e meu coração se confrangeu por
tanta miséria perguntando-me insistentemente como fazia
há anos, a razão de tanto contraste.
Na porta daquela casa eu me detive. Sempre procuro tomar um
pouco de ar para que possa me controlar ao ver tantas coisas tristes.
Mas quando entrei e deparei-me com tanta miséria, a revolta
foi maior. Não se podia chamar aquele compartimento de
uma casa. Casebre era o máximo, mas o mais triste quando
vi no meio do aposento frio cujo piso era de cimento, uma criança
deitada num colchão. Seu aspecto era tão frágil
que parecia não ter mais de cinco anos mas os traços
de uma magreza estranha revelava ter muito mais. O rosto estava
amarelado e os olhos fixavam uma distância impossível
de avaliar. Pareciam vidrados e quando se virou para mim, teve
uma expressão de surpresa e ficou me olhando durante longo
tempo. Queria saber sua reação, por isso fiquei
calada enquanto sorria para ele:
Como é seu nome?
Marlon, respondeu ele enquanto fazia a primeira sílaba
ficar tônica.
Você tem nome de artista. Ele então fez
um movimento súbito e disse baixo parecendo que a fraqueza
não o deixava pronunciar claramente as palavras e continuando
a me fitar:
Você é bonita, quem é?
Olhei-o com ternura enquanto apenas dizia
Alguém que veio visitá-lo. Gosta de receber
visitas?
Não me respondeu, mas seus olhos continuavam fixos em
mim. Observei então com mais detalhes aquele cômodo
pobre, sem uma luz para dar um pouco de vida e vi mais três
crianças. Todas com aspecto doentio notando as lágrimas
que desciam pelo rostinho da menor. E pouco depois, uma jovem
que imaginei ser a mãe saiu de um vão que deveria
ser a cozinha.
Aproximei-me, beijando-a enquanto a moça, tímida,
não sabia o que falar.
Conversei com o Marlon, o que ele tem?
Ele é doente. O Doutor disse que ele sofre de
ataques.
Fiquei imaginando o que seria e então lhe perguntei
Ataques? Convulsão? Epilepsia?
Sim, é esse nome. Ele toma remédio controlado.
E onde consegue esses remédios?
No posto. Mas não é sempre que eu encontro.
O Doutor me dá a receita dizendo que ele não pode
deixar de tomar, mas nem sempre consigo encontrar.
Foi com muito custo que consegui acalmar meu coração
enquanto lhe passava a cesta básica e lhe fazia algumas
perguntas. E ela começou a falar com naturalidade como
se precisasse desse momento de desabafo.
Imaginei a miserável vida que levavam, a luta da mãe
para trabalhar deixando aquelas crianças ali e a ausência
do pai que não dava nenhuma assistência.
Comecei a pensar uma forma de arranjar um lugar para que as
crianças ficassem durante o dia, onde recebessem assistência
e um tratamento mais adequado para Marlon.
Meus pensamentos iam para longe, mas nunca me conformaria. Não
com a miséria! Não com uma vida indigna para as
pessoas! Não com o sofrimento de uma criança!
E imaginei meus anos de infância, o conforto que me cercou,
os brinquedos que alegraram minha meninice em contraste com aquela
miséria e tristeza. Prometi que voltaria na próxima
semana, pois queria ir ao hospital em que o garoto se tratava.
Caminhei devagar divagando longamente, sentei no carro e não
consegui vencer a emoção.O quadro triste não
saía do meu pensamento e como um filme contemplava as cenas
em seus mínimos detalhes. Ali mesmo, naquele lugar onde
crianças brincavam pelo chão de terra e poeira,
esquecidas de seu triste destino, as lágrimas aliviaram
a enorme dor que se apoderava de minha alma como um terremoto
hediondo. E cheguei à conclusão que cada dia aprendia
mais, com as pessoas simples e boas, e eles me davam exemplos
de vida que jamais esqueceria.
Vânia Moreira Diniz
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