Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
outubro de 2001
Descerimônia
O divórcio chegou ao Brasil quando eu era concubina de
um homem desquitado e mãe de seus dois filhos. Custei a
regularizar minha situação perante a sociedade porque
as importantes ocupações do ogro que me coube não
lhe deixavam tempo para tomar as devidas providências. Nunca
cobrei, mas aquele pouco caso me magoava. Até que uma de
nossas muitas brigas resultou num infelizmente curto período
de separação e ele tratou de se mexer, enquanto
dizia às pessoas:
Vou me casar com a Emília mesmo nós não
estando mais juntos; depois a gente se separa. Devo isso a ela!
Ele sempre gostou de ostentar gestos nobres. E é tão
fora da realidade que acho que nem cogitou que eu não aceitaria
uma palhaçada daquelas. O fato é que acabou voltando
ao lar e se divorciando, não me lembro mais em que ordem,
e ficou livre para conceder-me a grande honra de ser sua esposa
legítima.
O casamento foi marcado às pressas por causa da lua-de-mel
na Europa um congresso médico ao qual ele teria mesmo
que comparecer, com direito a um giro suplementar uma semana.
Para facilitar as coisas, escolheu um cartório de subúrbio,
onde trabalhava um de seus funcionários, o que o livraria
da trabalheira incômoda de cuidar dos trâmites. E
Maria Emília, com a cabeça enfiada na areia, achando
tudo ótimo, cheia de romantismo.
Um dia, perguntou-me:
Você não faz questão de aliança
não, né?...
Respondi que não o que mais poderia fazer? E não
ligava mesmo, assim como nunca liguei para papel passado. Eram
suas atitudes me feriam, e não os fatos em si. Mas, uma
semana antes da efeméride, convidou-me para ir à
matriz da H. Stern no Rio... "Ooobaaa", pensei. "vou
ganhar um presente de bodas!"
Fui toda arrumadinha, cheia de expectativa. Estávamos
de encontro marcado com o diretor ou sei lá o que seja,
que veio receber-nos cheio de mesuras e levou-nos para conhecer
o processo de fabricação de jóias. Era só
esse o objetivo da visita: ia haver um congresso importante dali
a algum tempo e era preciso escolher onde levar a passear as acompanhantes
dos convidados estrangeiros...
Finalmente, chegou o grande dia. Antes de irmos para o cartório,
passamos na clínica pois, como sempre, havia assuntos importantes
a resolver. A todo mundo, ele dizia com um sorriso irônico:
Tenho que sair logo, vou casar...
Mandamo-nos lá para caixa-prego nós dois e uma
amiga que ia testemunhar a palhaç, digo, o enlace. A outra
testemunha ia ser o funcionário do cartóriomesmo.
É claro que um fotógrafo de plantão registrou
o ato. Recentemente, dei com as fotos nos meus guardados e tive
vontade de bater com a cabeça na parede de ódio
do meu sorriso idiotamente feliz. Rasguei todas. Aliás,
só agora me ocorre que não havia nenhuma de beijo.
Foi o tempo todo assim: nenhum carinho, nenhum olhar amoroso,
sempre a mais completa frieza.
Assim que chegamos em casa, meu marido enfiou-se no quarto, saiu
de lá vestido de médico e encaminhou-se para a porta.
Perguntei:
Onde você vai?
Vou trabalhar, ué!
Não vai almoçar comigo?
Eu não. Tenho um monte de coisas me esperando.
Mas a gente acabou de se casar!
Pra mim, é um dia como outro qualquer. Tchau.
Digo com a maior sinceridade que não me lembro como passei
aquela tarde. Mas deve ter sido horrível... Com certeza,
a mágoa e a frustração foram enormes. Mais
certo ainda é que eu não entendia o que havia acontecido.
Devo ter-me perguntado mil vezes que falta cometera para merecer
tal tratamento. Naquela época, eu já havia aprendido
que era culpada de tudo o que acontecia de errado.
Em parte foi isso mesmo, indiretamente. Ou melhor, não
foi culpa minha, mas da pouca importância que minha família
deu ao evento, não se tendo dignado a testemunhá-lo.
Com certeza, enxergava o pouco caso com que eu estava sendo tratada
e não queria compactuar. Por outro lado, como o ogro achava
que estava me concedendo um grande privilégio, queria que
não apenas eu rastejasse agradecida, mas todo o meu clã
e ficou furibundo com a desfeita. Isso é dedução
minha, pois ele nunca me deixava saber os motivos de suas contrariedades.
Somente há pouco tempo matei essa parte da charada, como
também a outra muito mais feia: existia um genuíno
e intenso prazer em me fazer sofrer. Tenho certeza, por exemplo,
de que o convite à H. Stern, sem motivo revelado e às
vésperas do casamento, teve o objetivo de criar-me expectativas
para frustrá-las em seguida.
O ogro é tido como bondoso porque ajuda quem precisa.
Muitas vezes, eu mesma pensei: "como posso ser infeliz com
um homem que pratica tanto o bem?!" Só que quem é
ajudado fica numa situação de inferioridade e, se
precisa mesmo, não tem outro remédio senão
aceitar broncas, humilhações e grosserias. É
esse o prazer que ele busca com seus gestos magnânimos.
Como, com certeza, em sua mente distorcida, achava que estava
concedendo-me um favor casando-se comigo, fez-me pagar o preço.
Sua atitude era a mesma quando me proporcionava viagens, durante
as quais tratava-me com estupidez a maior parte do tempo. Lembro-me
de que, quanto mais eu estivesse esperando momentos felizes, mais
perverso era. Oh, e se eu, apesar dele, tivesse bons momentos,
então vinha chumbo grosso sob qualquer pretexto idiota.
Mas tudo isso, só percebo agora. Na vigência da
nossa relação, eu acreditava que vivia pisando na
bola e era culpada de tudo. Céus, como eu tentava acertar!
E quanto prazer devia lhe dar com meu infrutífero esforço!
Lembro-me de um certo sorriso que recebi tantas vezes, pleno de
um sadismo que eu não identificava e do qual tenho ouvido
dizer que ele se orgulha.
Maria Emília Berthier
|