Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  outubro de 2001


E.....Se?

Esta era a pergunta que a Luara adulta fazia toda a vez que folheava seu diário. Por exemplo, "e se chovesse no meio daquele pique nique que eu odiei?" E em qualquer parte da página ou num pedacinho de papel extra grampeado lá ia um comentário qualquer. "Tio Manuel ficaria ensopado e eu riria muito..."

Gostava de imaginar um e...se para cada acontecimento. Ganhara o diário aos nove e o usura esporadicamente até os doze anos, quando bruscamente interrompeu suas anotações, retomando-as acompanhadas pelo e...se aos 15 anos.

Luara agora com 36 anos usava o e..se como uma fórmula para manter seu equilíbrio, contrapondo suas pesquisas em Física Avançada com sua imaginação romântica.

O diário era seu companheiro, mas ela evita de lembra o motivo que a mantivera afastada dele dos doze aos quinze anos. "os três anos que nunca aconteceram", como dizia ela.

Com exceção deste período sua vida poderia ser considerada normal e saudável.

A Dra. Luara era uma física de sucesso e uma respeitável autoridade em sua especialidade: o tempo.

De certa forma, seu diário de "e...ses" revelava sua preocupação maior centrada nas realidades alternativas. Proferira centenas de palestras que iam de aspectos teóricos e técnicos a especulações filosóficas e éticas.

Apesar de seu sucesso e do sucesso de suas teorias, Luara não esperava ver em sua vida alguma aplicação prática até que ela e um grupo de cientistas ousados conseguiram resultados concretos com o transporte de seres vivos através do tempo.

O fascínio dela pelo tempo e o buraco em seu diário a colocaram ali, um dia antes de sua última a notação no diário antes de seu silencio de três anos.

Temerariamente a Dra. Luara se lançara num protótipo ao passado e se materializara (por sorte sem testemunhas) numa casa abandonada, próxima ao local em que vivera.

Ela estava vestida com roupas da época, discreta, mas elegante.

O que estaria fazendo ela ali? A grande física, que palestrara muito sobre segurança nas viagens temporais esta prestes a fazer o que todos os manuais sobre tempo(reais ou da ficção científica) proibiam: encontra-se consigo mesma.

Ela já pensara em tudo. Sua mãe estava doente no hospital e sua tia Yone, que nunca visitara sua mãe, poderia muito bem aparecer. Pelo que se lembrava, não tinha sequer visto uma fotografia dela. A sua semelhança consigo mesma poderia ser explicada.

Lembrava-se bem de sua rotina. Mesmo com a mãe hospitalizada, ela ainda ia e voltava sozinha da escola e ficava em casa algumas horas até seu pai chegar.

Esperou pela sua volta. Assim que Luara-menina entrou em casa, Luara-adulta dirigiu-se até a porta. Parou diante da campainha... um instante de indecisão, causado por um vago medo e uma certa pontada na consciência. A indecisão foi breve. Afinal ela chegara até àquele ponto e não retrocederia. E... culpada do quê? Ela estaria interferindo apenas no seu passado...

Ouviu uma voz de menina no porteiro eletrônico:

— Quem é ? — perguntou

— Sou eu, sua tia Yone, irmã de sua mãe.

Um aporta se abriu e uma pré adolescente magra e alta abriu a porta. Luara havia se esquecido que fora alta e se surpreendeu um pouco.

— Olá, tia, — disse ela com alegria. Luara-menina era muito alegre e gostava das pessoas.

Luara adulta entrou. Fazia muitos anos que não entrava ali. Pensou —e este pensamento lhe — fez sorrir — que era como tivesse voltado para a infância.

Luara-menina lhe ofereceu um suco de laranja. Aguado e doce demais, "como eu fazia", pensou.

— Vovó disse que você viria.

Luara-adulta tomou um susto. "Como? Vovó?" pensou. Suas duas avós não estavam ali naquele dia. Teria por acaso ido parar em uma realidade alternativa?

A garota percebeu o susto e disse:

-— Vovó pediu para eu dar-lhe isto caso você se assustasse.

Luara-menina mostrou-lhe uma caixa embrulhada em papel escuro. Luara-adulta abriu e tirou de lá de dentro um diário. Não um simples diário, mas "o" diário. Igual ao que tinha em sua bolsa, só que com uma aparência mais envelhecida. Os olhos de Luara-menina brilharam:

— É igual ao meu diário!

A campainha tocou.

A menina foi abrir a porta e uma mulher de cerca de 60 anos entrou. Luara adulta observou a figura e sentiu-se observando seu próprio rosto, sob efeito de alguma trucagem de envelhecimento.

A senhora trazia uma caixa de presente e deu-a à menina. A garota abriu o embrulho e ficou radiante com o par de patins que ganhara. A senhora então lhe disse:

— Vá experimentá-lo lá fora.

A garota correu contente.

Com ela fora de vista, as duas mulheres se olharam. Um minuto eterno se passou até que a mais velha quebrou o silencio, abrindo a bolsa e mostrou-lhe outro diário.

— Durante muitos anos eu escrevi neste diário — disse a senhora. Cada um que acabava eu comprava outro com a mesma capa.

— Você sou eu — admirou-se Luara-adulta, apesar de já ter sentindo isso desde o primeiro momento.

— Sim, mas você é um eu-mesma diferente. Um eu-mesma muito melhor. Eu não me importaria de continuar a ser o que sou se não tivesse descoberto, quase que por acaso o que aconteceu ou aconteceria hoje. Sorte que esta mania de escrever tudo num diário me ajudou a chegar neste exato instante.

— Mas o que aconteceu? E por que você está aqui?

— Eu sei por que você veio. Está escrito aí neste diário — explicou Luara-mais-velha, apontando para o livro que estava nas mãos de si-mesma mais nova.

Luara mais nova olhou para o diário, pensativa.

E a senhora continuou:

— Você esperava evitar o trauma que a menina sofrerá daqui a algumas horas. Seu pai virá pegá-la para ver sua mãe no hospital. Você sabe que ela está doente...

Luara-adulta não se conteve:

— Sim! Mas ninguém disse que ela estava á morte...

A outra continuou:

— ... você foi ao Hospital e, quando você estava no quarto, ela morreu. Ficou horrorizada e fechou-se como uma concha. Durante três anos chorava durante o dia e tinha pesadelos à noite. Tudo por que viu sua mãe morrer...

Um silêncio se impôs mais uma vez. As duas se olharam novamente e a mais velha continuou:

— Você veio até aqui, se apresentou como a tia Yone que ninguém conhecia, se ofereceu para ficara coma menina. Enquanto todos os outros estavam no hospital, você e ela conversaram longamente. A garota agora estaria preparada para enfrentar a morte de sua mãe. Esperou momento certo e voltou para sua época, não sem antes anotar tudo o que fizera... e abandonar sem querer o diário, tal qual uma Cinderela...

Luara mais velha fez uma pausa como se esperasse que suas palavras fossem digeridas e em seguida, retomou o seu monólogo:

— Você não voltou para a mesma realidade, mas para a que você criara. Luara agora era diferente. Creio até que a memória de sua vida alternativa foi apagada. O que você fôra ficaria esquecido para sempre. Ou quase, se eu não tivesse decidido vender esta casa. Ao arrumar as coisas, encontrei este velho diário, que está aí na sua mão. Imediatamente o outro eu que eu fôra voltou à minha memória. Cada página que eu lia...

Luara-mais-velha, muito exaltada, quase chorando, retirou de sua bolsa um outro diário igual.

— Veja! — ordenou, estendendo a mão com o livro para a outra.

Luara-adulta folheou as páginas. Sua letra era inconfundível e a forma de escrever também, mas tinha algo estranho.

— Não notou falta de nada? — perguntou a mais velha.

— Falta o "e... se"

A mais velha retomou o discurso:

— Foi isso que você fez a si mesma. Não se tornou uma cientista brilhante. Sua motivação será morta hoje se continuar com o seu propósito! O três anos de sofrimento foram (e serão se você deixar) necessários para criar a sua tenacidade e principalmente sua criatividade.

Luara-adulta ficou espantada:

— Quer dizer que eu...

— Você me tornou uma pessoa medíocre! E tem mais: isso retardou as pesquisas sobre o tempo em cerca de dez anos! Segui as pistas no seu diário que me levaram a seus colaboradores e os convenci a me trazer até aqui e impedi-la...

Luara-mais-velha olhou para a janela como se esperasse alguém e continuou:

— Daqui a pouco o nosso pai chega e eu devo sair antes. Afinal ele sabe como era a mãe de sua mãe. Só ficará o mistério dos patins, mas os acontecimentos traumatizantes apagarão tudo... O pessoal lá fora já está me acenando para eu ir.

E, virando-se para Luara adulta:

— Veja lá o que vai fazer...

Luara adulta ficou olhando com tristeza seu futuro alternativo ir embora.

Pouco depois, a menina entra na sala. Luara-adulta olhou-a nos olhos e disse:

— Eu preciso ir agora, não posso esperar seu pai...

— Puxa, que queria que você ficasse...

—Preciso ir. Antes quero dizer-lhe uma coisa: se algo não for bem como você quer, imagine como seria se alguma coisa qualquer mudasse e escreva em seu diário "e...se".

Luara-menina não pode deixar de notar a lágrima.

Álvaro A. L. Domingues
 
 
 
 
 
 
 

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