Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  outubro de 2001


Terça-feira, 06 de março de 2001

Na Cama com Vinícius

Minhas refeições são quase sempre solitárias. Por isso, possivelmente, contraí o vício de fazer-me acompanhar por leituras. Busco alguma coisa pela casa e, não encontrando, viro-me com o rótulo do azeite, por exemplo.

Ontem, achei na minha estante um livro do Poetinha por mim já esquecido, "Para Viver Um Grande Amor", leitura que durou mais do que o jantar e acompanhou-me ao leito. Que poeta cronista danado! E quando ele escreve sobre a crônica? Na orelha do livro, Otto Lara Rezende diz:

(...) o Poeta definiu seu conceito de crônica, ou seja, uma conversa íntima e livre que, partindo do seu interesse pessoal, vai de fato interessar a todos os leitores.

Lendo a crônica de Vinícius sobre a crônica, identifiquei-me com os cronistas, ainda mais que me encaixo exatamente no que foi dito acima. Trato de assuntos de meu interesse pessoal e todos os meus leitores interessam-se por eles. Claro, pois quem não se interessa não vira leitor. Que sejam poucos os meus, não vem ao caso. Nessa, o Otto dançou...

Na crônica do Poetinha propriamente dita, achei uns trechos deliciosos:

"Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado."

Mais adiante:

"(...) levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração —e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência (...)"

Aí é que mora a diferença entre um cronista e uma "diarista on line": não tem linotipista nenhum me esperando! O máximo que acontece, e que me deixa toda boba, é receber um e-mail reclamando do meu silêncio. Por outro lado, dinheiro que é bom...

No mais, uma diarista on line como eu faz outras coisas quando resolve escrever e não sabe sobre o quê: conecta, vê se há e-mails novos, desconecta, joga Free Cell, conecta e desconecta novamente, relê seus escritos passados (não em busca de inspiração, mas para curti-los), acende um cigarro, conecta, vê se há e-mails novos, desconecta, joga Free Cell, tenta outra vez a caixa postal... Quando se depara com aquele abominável recadinho "nenhuma mensagem nova", tem vontade de bater com a cabeça na parede por ser missivista tão relapsa quando, ao mesmo tempo, deseja que seus correspondentes sejam assíduos — mea culpa.

Vinícius na minha cama fez-me lembrar da única vez em que o vi pessoalmente (não me refiro a palcos), possivelmente aos 16 anos. Foi em Ouro Preto, durante o Festival de Inverno. Eu havia ido em excursão organizada por outra Maria Emília, minha professora de Turismo no Colégio de Aplicação da então Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Rio de Janeiro.

Meus dois anos de Colégio de Aplicação foram tão divertidos, que não tive tempo de dedicar-me ao estudo. Eu tinha um grupo bárbaro de amigos, festinhas em todos os finais de semana, a gente ia lanchar na Confeitaria Colombo de Copacabana e conseguia com freqüência ingressos teatrais a preços módicos. O uniforme era saia plissada azul-marinho e blusa de linho (tinha que ser linho) caída por fora, abotoada na frente e com o emblema da universidade no bolso. Como tínhamos o "status" que a escola nos garantia, vestíamo-nos elegantemente e não estudávamos nada, meu pai qualificava-nos de "os pequenos farsantes".

Hoje, enxergo que não estudávamos nada de acordo com padrões paternos em geral. Mas virávamo-nos todos muito bem, metíamos a cara quando a porca estava quase torcendo o rabo e, sei lá de que jeito, o Colégio de Aplicação
proporcionou-nos formação sólida e enriquecedoras atividades extra curriculares como teatro, shows musicais, palestras —além de outras não exatamente culturais e à revelia daquele templo do saber. Tanto é verdade que todos os meus colegas de quem tenho notícias alcançaram reconhecimento e prestígio em sua área de atuação. Eu não, porque fiz a bobagem de atrelar minha vida profissional à de outrem.

Sim, mas voltando ao meu companheiro de leito. Lá estava ele com Toquinho, na praça principal de Ouro Preto, ao pé daquele obelisco que a gente chamava de "o pirulito de Tiradentes", dando a maior canja da sua presença. Conversa daqui, dali, nós todos absolutamente deslumbrados, Toquinho com seu violão e os dois oferecendo-nos amostras de suas composições, até que um de nós (não eu) pediu para tirar uma foto do nosso grupo com ele. "Oh, claro!" Eu vi que havia uma brecha ao lado do Poetinha e fui correndo sentar-me ali, achando-me a mais esperta e rápida das viventes. Mas ele me repeliu dizendo:

—Não, aqui é o lugar da "fulana".

E que gata que era a "fulana", já sendo então puxada por ele pelo braço! Mais velha do que a gente, soltinha e, possivelmente, absolutamente apetitosa para o nosso vate tão apaixonado pelas mulheres.

Aliás, meu Deus, quanta paixão! "Para Viver Um Grande Amor" foi dedicado à Lucinha, uma de suas inúmeras esposas.

"(...) Ela é aquela
Que eu não pensava mais possível, nascida
Do meu desepero de não encontrá-la. Ela é aquela
Por quem caminham as minhas pernas e para quem foram feitos meus braços
Ela é aquela que eu amo no meu tempo
E que amarei na minha eternidade —a amada
Una e impretérita. (...)"

Ele acabou acabando preterindo a impretérita, pelo que me consta. Mas, afinal, a paixão sempre acaba acabando mesmo e, ao que parece, Vinícius não podia prescindir dela. Tinha a coragem de deseternizar o amor e seguir em frente. Aliás, esse tal de "até que a morte nos separe" presta-se a interpretações alternativas. Morte de quem ou do quê? Gente, pode ser a morte do Amor e, neste caso, dou o maior apoio às palavras rituais cristãs.

Voltando ao Vinícius sentado no pirulito de Tiradentes. Ou melhor, voltando à sitiante que, pela frase anterior, deixou claro que não superou de todo a mágoa que seu ídolo lhe causou. Não me lembro mais quem foi que tirou a tal foto e nem se cheguei a vê-la. Sepultei o episódio como se tivesse sido pessoalmente rejeitada, sofrido grande humilhação. As coisas que uma cabeça jovem pensa, fazendo sofrer seu parceiro coração!... Um fato corriqueiro, perfeitamente lógico e compreensível virou em mim uma chaga que só agora cicatrizou. Ilhoamente falando:

Poetinha, tás perdoado, visse?... Quisera eu ter sua coragem e indomável sede de vida.

(do meu diário em 06/03/2001)

Maria Emília Berthier

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