Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  outubro de 2001

Gente,

No "Meu Diário", lá no Sítio, esse texto tem uma foto e fundo musical.

Beijos,
Emi

* * *

Casaco marron

Alguém está ouvindo a música de fundo?...Céus, vivo dançando com essa história de "pluguins". Acerto às vezes, mas por puro acaso e, depois, não sei reproduzir o feito. Trata-se de "Casaco Marrom"... Estou dentro do meu na foto. Era de tricô, com botões idem, feito por mamãe. Tinha uma gola gostosa, que dava para levantar e agasalhar o pescoço, dá para ver?

Nunca entendi o gosto pelo tricô - chatura que não rende! Minha mãe curtia e sempre via televisão contando as malhas. Como tinha mais o que fazer, produzia apenas um agasalho por ano, de modo que só ganhávamos novos a cada quatriênio - isso, antes de meu sobrinho nascer.

Esse meu era um casaco como qualquer outro até surgir a música que espero que estejam escutando. A partir dali, virou símbolo de aconchego, rebeldia, consolo, liberdade... Escudo contra as agruras da minha jovem existência, uma espécie de "danem-se todos!" Quando precisava lamber as feridas, mesmo sendo verão, vestia-o ainda que mentalmente e via-me sentada num banco da praia de Copacabana, tempo inóspito, vento no rosto, olhando o mar e recarregando as baterias. Mandava todo mundo às favas, sentia-me mais eu. Ficava forte como não conseguia ser na vida real. Que bonito, não? Dava cena de filme!

De verdade mesmo, nunca fiz isso... Imagine, eu morando na Tijuca e atravessando o túnel só para curtir fossa à beira-mar, sentada num banco duro e exposta às intempéries... Ainda nem havia metrô naquela época e sou taurinamente amante do conforto. Curtir fossa: era esse o espírito da coisa, muito mais do que recarregar baterias. Fazer aquele ar de vida interior intensa, com o olhar perdido no horizonte e pensar originalidades do tipo "ninguém me entende", ou "ninguém me ama" - quando quem não me amava era somente o gato que me interessava no momento e eu sempre achava que era a minha eterna e irremediável paixão. Acho que era chique sofrer por amor naquela época. Aliás, chique mesmo era exibir dor-de-cotovelo, muito mais do que sentir de verdade.

O mundo é cruel para com os músicos e/ou poetas musicais. Gente como eu, por
exemplo, curte e cantarola coisas lindas sem bolachar para os autores. Não: estou sendo severa demais comigo, pois sou diferente agora. Talvez, até, tenha sabido na época de quem era esta pérola: música de Danilo Caymmi, Renato Corrêa e Guarabyra; letra de Guttemberg Guarabyra. Quem está cantando é o Trio Esperança em arranjo "a capella", conforme informou Silvana - assessora da sitiante para assuntos culturais.

Outro dia foi que soube, ou re-soube, que o Guarabyra é autor deste símbolo da minha juventude. De quebra, não só fiquei sabendo que ele teve um casaco marrom de verdade, como vi a foto do mesmo! Não sei por que fiquei surpresa... Ora bolas, se ele escreveu sobre o casaco marrom dele, era muito provável que tenha tido um. Mas a gente nunca sabe com esses poetas. Descobri que existe um troço chamado "eu poético", ou seja, o vate embarca em sentimentos que não sente e escreve sobre eles... Eu, hein... Parafraseando Obelix, "são todos uns neuróticos". Deve ser a falta desse poder de vôo que não me deixa ser poeta - ou poetisa, mas isso é outro assunto.

Só sei que quando, passado tanto tempo, recebi no meu computador o pacote
completo, música com casaco e tudo, voltei no tempo! Fiquei emocionada e pensei: "homessa, ele também teve um casaco marrom!", como se o pobre
tivesse me copiado quando foi ele que deu significado ao que eu tinha. Vieram de enxurrada tantas lembranças de gente, fatos e lugares, só que tudo numa confusão, sem cronologia. Não consigo mais me lembrar o que foi que aconteceu quando: a turma do Bonde, festivais da canção, acampamentos, Colégio de Aplicação, festas juninas, Confeitaria Colombo, seção das quatro no cimema Metro seguida de missa das seis na Sagrados Corações - puro pretexto para paquera.

Ah, se eu voltasse hoje! Ia fazer tudo diferente. Não ia perder tempo com fossas, nem com amores não correspondidos; ia saber que não sou um patinho feio; ia pintar margaridas nos meus jeans, usar calça abaixo da cintura além do permitido, ter uns namoros mais quentes (que isso nunca tirou pedaço de ninguém), experimentar aquela fumacinha só para saber como é que era.

Quando fui escanear umas fotos antigas, o rapaz que fez o serviço olhou-as e disse sorrindo: "parece que estou vendo Woodstock". Minha reação imediata foi de orgulho por ter sido jovem naquela época mas, na mesma hora, veio um certo desalento por tê-la vivido à margem, cheia de medos e convenções, obediente demais. É por isso que hoje tiro tanto prazer das minhas pequenas transgressões.

Maria Emília Berthier

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