Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  janeiro de 2002


Quim e a Rezadeira

Quando havia precisão de uma reza, a chamavam. Já era costume vê-la entrar sem cerimônia nas casas de pessoas doentes e lá, instalar-se de rosário entre os dedos.
Era quieta, de poucas palavras e não se metia em festas e fofocas. Achava absurdas certas modernidades, mas não levantava voz para protestar, cada um sabia de si. De sua boca só saíam cumprimentos frios, ladainhas e novenas. Era solteira, de idade indefinida, mas pelas contas do povo da cidade devia beirar os 40 anos. Vestia-se de negro, um resguardo que mantinha em homenagem aos parentes mortos. Só botava os pés fora de casa para ir à igreja, funerais e batizados, a casamentos não ia, achava-os todos muito iguais.
As compras do mês quem fazia era o Quim, moleque que apareceu ainda pequeno
por lá e foi ficando. Criava-o como filho, mas não lhe punha no colo, nem lhe dava beijos, quando muito, uma moeda para um doce na venda de seu Maciel. Mesmo assim, Quim a chamava de mãe, adorando-a como à imagem da Santinha vestida de azul. Estranho, como em uma casa, sempre fechada e sombria, pudesse florescer uma alma alegre como a daquele menino.
— Quero 2 metros daquela cambraia de linho.
— Cambraia branca? mas a senhora sempre leva a preta.
— É para o Quim, vai fazer primeira comunhão.
Certa feita, Quim acordou com febre e, preocupada, chamou o Dr. Lupércio
que, diagnosticou uma constipação nos intestinos.
— O que diacho esse menino andou comendo?
Agora a doença era dentro de casa. Não fez diferente e, calada, sentou-se ao lado da cama do doentinho pondo-se a desfiar as contas de madrepérola do rosário. Do quarto, saía somente para buscar a sopa do menino e receber o médico. A infecção avançou lenta e cruelmente sobre o corpinho débil da criança.
— Não sei se ele agüenta mais uma noite com tanta febre.
Olhava-o com olhos baços e, no rosto duro, os lábios movimentavam-se rápidos, em preces desesperadas. Nunca rezara tanto. Naquela longa noite, dormiu e, nem sabe por quanto tempo, mas do sonho cheio de visagens, lembrava-se. Viu-se mocinha, de cabelos soltos e vestido rosa; nos braços trazia um belo ramo de primavera.
— Mãe? Mãe! Acorda!
— Quim?
— Eu sonhei que virei anjo e vinha te buscar pra passear. A senhora estava bonita mãe, toda de rosa. Parecia uma nuvem.
A febre fora embora. Mas veio o choro, tão doído, tão sentido que, não conseguia parar de soluçar. Chorava por tudo, por ela e Quim, de alívio e remorso, de dor e tristeza, alegria e arrependimento.
— Por favor, me veja 4 metros daquele algodão cor-de-rosa.
— Senhora, cor-de-rosa não cai bem em um menino.
— É um vestido para mim. Quim me disse que essa cor combina com meus cabelos, e, além disso, é primeira comunhão. Quero estar bonita para meu filho.

Mariza Lourenço

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