CIDADES BRASILEIRAS

A GUERRA INTERMINÁVEL

Nos velhos livros do cartório
que o vento do mar e as traças roem
o tempo lambe Porto Calvo.

São vermelhas as casas de taipa
das sesmarias junto ao mar azul.

As arcas e a louça quebrada ultrapassam
aquele limite da vida que é um muro de cacos de garrafas
e protege a ação rescisória e o formal de partilha.

O sol almoã pedras. O resfolegar
dos cavalos cansados dos holandeses não assusta os gatos
nas janelas floridas das meiáguas.
E os homens, es se animal feroz, mata e morre.

Neste cartório virado para o mar ontem e hoje são letras de uma mesma escritura de compra e venda
e berço e túmulo têm igual forma no mormaço
que faz bocejarem as figuras desta guerra interminável .

Os canhões enferrujados voltarão a atirar
num silêncio de espera, armado como um arco-íris
entre as nuvens do céu e as baratas da terra.

Na trégua que não guarda o nome dos mortos
os bois mugem para as naus flamengas
que levam pau-brasil e caixas de açúcar.



LEMBRANÇA DE UM ANCESTRAL

     O meu ancestral, que vinha de Porto Calvo, desceu do cavalo e, com seu cheiro de pólvora e as boras de couro cru pisando em seixos e calhaus, atravessou o rio Prataji.
     Era durante a guerra holandesa, mas ainda hoje sinto os pés úmidos desta travessia.

                                                          Lêdo Ivo

Do livro: Finisterra (1965-1972), Lugar de Nascimento, in Poesia Completa (1940-2004), Topbooks, 2004, RJ

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