Clarice, eu sinto muito, mas preciso me despedir de você...
Preciso levar a vida que me é possível levar e dela me apropriar inteira, por isso terei de me esquecer de você um tiquinho para poder me (re) apropriar de mim.
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Vi, hoje, flamboiants se oferecerem, ipês se insinuarem porque setembro se anuncia sensualmente.
Ontem choveu forte, tempestade violenta e amada, há muito desejada por mim; água lavando e levando tudo que encontrava pela frente, raios no céu... Iansã senhora minha, ofertando sua força guerreira aos que conseguem vê-la.
Provo da tempestade em minha pele nua, ela me bate, arde em meus poros, mandando-me acordar de um transe insano.
Noite crescendo, chuva na pele secando, magia natural me refazendo dos meus malefícios.
Já não trago a palavra peçonhenta, a bipartida língua... ronrono em plena manhã.
Indo para o trabalho, sob mangueiras, enxergo um acampamento cigano. Fico curiosa, contorno o quarteirão, busco contatos tímidos. Sou rodeadas por mulheres, pergunto dos preços das peças expostas à venda, o cobre me atrai, mas só há tachos e panelas, quero caldeirões, agradeço. Uma delas me pergunta se desejo saber do futuro, oferece-se para leitura das mãos, escorregadia rio e deixo essa incerteza me esperando... Minhas mãos são tão imprevisíveis quanto a dona delas... Não posso confiar naquilo que minhas mãos informam, elas são quinhentas e com outras tantas possibilidades!
Constato o meu atraso para o trabalho, acelero o carro ao som de Zeca Baleiro mas, prestando atenção na letra, desacelero, prolongando o prazer de ouvir a voz masculina, sensual que me diz "não querer me ver cuspindo ódio, fumando ópio..."
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Seis sessões de análise desde que retornei.... Intercalo longos discursos com silêncios tradutores da minha luta para descobrir a minha autêntica, a minha mais honesta tradução de mim... Vem uma outra de mim que diz:
— "Oh, pra que tanta fidelidade? Você não é cão pra ser tão fiel assim...."
Mas obstinada, brigo comigo e com meu analista...
Ele tem bonitos olhos claros, que me anunciam sua presença silenciosa e atenta às várias personagens que lhe apresento a cada encontro.
Analistas podem ser altamente perigosos, porque se desumanizaram, foram adestrados para não exercitarem empatia com seus analisandos; considero isso no mínimo estranho!
Observo os analistas que já conheci... foram poucos... mas entre eles há um fio que os iguala, que os" formatam" num aspecto, num ponto ainda irreconhecível para mim...
Qual a matéria que compõe os analistas? Que mistério se esconde entre a palavra e a coisa que nós, "pobres mortais", perdidos em nossos traumas e recalques de toda ordem, não conseguimos perceber, nem intuir?
Esses semi- deuses , foram preenchidos de que?
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Planejo janeiros, fazendo e refazendo contas, escassos saldos, promessas de me organizar.
Mais um lançamento, um corre - corre doido...
Setecentos livros... Meu Deus!
Acho que por um longo tempo presentearei livros, sempre há natais, páscoas, aniversários... Entrevejo minha casa recheada de livros... Tem poemas saindo de dentro do forno, e da geladeira - eles me sufocam... Abro o armário e sai pulando um "Identidade"; da panela de pressão explode "A Coisa" fervendo... Do armário saltam "Rituais " sobre mim, deito com "Invasor"... vai ficar movimentada minha vida!
Enjoarei desses poemas hoje tão amados?
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Fujo pela net durante as madrugadas insones.
Percorro sites de poesias, acho que já visitei todos, onde posso deslizar suavemente – velas ao cais.
Dou ótimas gargalhadas nos chats... meu teatro de horrores!
E sonolenta, depois de mil cigarros, algumas lágrimas ridículas e seis miligramas de "Lexotan", concordo com o "meu" (?) marido enquanto adormeço:
— "Eu sou mesmo muito esquisita!"
Ji- Paraná, 11 de agosto de 2000
Graça Coêlho