As flores dos campos que trouxe há uma semana de uma manhã maravilhosa há muito estão deitadas entre as grandes folhas de um terno mata-borrão; mas nesta hora em que as contemplo, sorriem-me como uma recordação cheia de graça esforçando-se por parecer alegres como outrora.-
Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um únici barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro.
O fato de se lhe dever seguir um regresso ao quotidiano não pode esbater estas horas insulares. — Elas permanecem à margem de todas as outras horas, como que vividas ao mais alto nível do ser.
Este tipo de existência insular e mais elevada é a meus olhos o futuro de muito poucos.
Uma felicidade toca, floresce ao longe,
Alastra em volta da minha solidão
E procura tecer para os meus sonhos
Um enfeite de ouro. E ainda que
A minha pobre vida esteja gelada de madrugada
Inquieta e neve dolorosa,
A hora santa virá para ela,
Um dia, da sagrada Primavera...
Desejaria
estar já em Dorfen. A cidade é tão ruidosa, estranha.
E, nos períodos de maturação interior, nada de estranho
deve aflorar as nossas margens.
Um dia,
daqui a muitos anos, compreenderás completamente tudo o que és
para mim.
O que
é a fonte da montanha para quem está sequioso.
E se quem
está sequioso é um homem íntegro e agradecido, não
vai procurar frescura e força à sua claridade para voltar
a partir para o novo sol; sob sua proteção e suficientemente
perto para ouvir o seu canto, constrói uma cabana e permanece neste
vale pacífico até que os olhos estejam cansados do sol e
o seu coração transborde de riqueza e de compreensão.
Eu construí cabanas e — permaneço.
Minha
límpida fonte! Como te estou agradecido. Não quero mais ver
flores, céu, sol — a não ser em ti. Tudo é absolutamente
mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que
— sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti — treme
de frio no musgo, solitária e terna, reflete-se clara na tua bondade,
vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que
irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único
aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas
ondas luminosas da tua alma. Minha límpida fonte. É através
de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já não
o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti!
Tu és
o meu dia de festa. Quando em sonhos me junto a ti, tenho sempre flores
nos cabelos.
Desejaria
colocar-te flores nos cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente
que deveria, nenhuma é suficientemente simples. Em que Maio colhê-las?
— Mas creio agora que tens sempre nos cabelos uma grinalda — ou uma coroa...
Nunca te vi de outro modo.
Nunca
te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que
não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o
desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito
de me ajoelhar à tua frente.
Sou para
ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiara. Sou para
ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti
como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a
noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação.
René
Rainer Maria Rilke
Do livro: "Correspondência Amorosa", Rainer Maria
Rilke e Lou Andreas-Salomé, trad. Manuel Alberto, Relógio
D'Água Editores,1994, Lisboa.
Enviado por: Márcia Maia