Estás muito longe de mim. Num lugar livre em que o espaço
não tem limite e que já não necessitas da vitalidade
física que tanto desejavas. Teu rosto deve expandir a saúde
que precisaste tanto em dias de nossa infância. Daí podes
realizar o que sempre quiseste: Defender-me em horas que achavas necessário,
mas que eu te afastava sorrindo como a dizer que era melhor que eu mesma
o fizesse.
Na minha cabeça as cenas de nossa infância se multiplicam
e a saudade se condensa num mesmo pensamento de recordações
irrecusáveis. O nosso companheirismo, ternura, carinho, a confidência
de todas as horas e a necessidade da presença recíproca.
Os risos, as discussões raras, a intimidade de cada palavra e a
presença de teus olhos que me fitavam e que eu amava.
A certeza de que poderíamos sempre contar um com o outro inquestionavelmente,
a defesa que se estabelecia naquela relação fraternal e maravilhosa
e a convicção de uma afeição profunda e duradoura.
As nossas conversas em que deixávamos escapar a alma e o sofrimento
doloroso quando soubemos que estavas doente. Que teríamos de nos
afastar e que irias para longe. Éramos ainda pequenos e nada podia
nos levar a compreender aquela brusca mudança em nossas vidas.
Revejo a casa de nossa avó, grande e espaçosa onde ficaram
os sonhos infantis e inocentes e onde deixamos guardados sentimentos que
se perpetuaram pela vida afora.
Recordo a reunião de todos
os primos, o barulho ensurdecedor para os adultos, a mesa farta e cheirosa,
a avó Isa ainda muito loura e linda, os serões fascinantes
nos quais alimentávamos nossa mente em efervescência constante.
E que enchíamos nosso espírito do combustível necessário
para que a imaginação voasse e tivesse forças para
alimentar novas curiosidades.
Esse tempo não voltará jamais, meu primo. Não sabíamos
que ali estava o momento certo de usufruirmos a presença e amizade
e de agradecermos cada instante as nossas ternas brincadeiras e segredos.
Jamais esquecerei, querido Carlos, o modo muito franco com que me olhavas
debaixo de seus óculos que corrigiam o ligeiro estrabismo, mas que
me confortava e cuja beleza eu sabia avaliar.
Na energia que há muitos anos transmites de um lugar em que certamente
encontrou paz e confiança, um lugar sereno e livre de sofrimentos,
eu me refaço da dor de um dia ter-te perdido. Na verdade foste sempre
alguém especial que sabia compreender ainda pequeno o que a própria
vida impunha. E lembro-me quando um dia me disseste que irias para longe,
mas que estarias sempre comigo na profundidade daquele amor fraterno e
imenso.
Compreendo isso, hoje, Carlos. Cada uma das suas palavras e da sua aceitação
sem limites. Entendo que havia muito de instintivo naquela bondade infantil
que só eu compreendia. E que agora usufruis na paisagem encantada
que já não faz parte do mesmo cenário que vivemos
juntos, mas que pelo carinho eu posso pelo menos pressentir.
Beijos da prima
Vânia