CARTA PARA CLARICE

Clarice, querida:

O Fernando acaba de publicar as cartas que você e ele trocaram entre 1946-1969. O livro virou um sucesso imediato. Já vai para a segunda edição e o Sabino está numa felicidade de juntar menino. Ele merece. Andou meio recluso nos últimos anos. E assim como tem gente que tem dedo verde e outros, o toque de Midas, ele tem essa virtude: o que publica é best-seller. De maneira que você ia achar estranho que aquelas coisas tão pessoais, aquelas elocubrações sobre a vida e a arte, pudessem, cerca de 50 anos depois, vir a público, e mais: deixar as pessoas fascinadas. Fascinadas e invejosas. Invejosas de uma inveja construtiva, é claro, como a minha. Fui lendo o que vocês se escreveram e pensando que o livro serve a vários tipos de leitores. Para o escritor jovem é uma humilde e sucessiva aula de como escritores da dimensão de vocês sofrem para achar seu caminho e elaborar a obra. Instrutivo aquilo que Fernando considera como "tentações da facilidade" no fazer literário e as ironias sobre o "escritor muito inteligente".
Para o escritor já maduro é oportunidade de compartir angústias que também teve (e tem), como se estivesse numa santa ceia literária. Vocês mesmos ficam pasmos quando descobrem que um Julian Green em seu diário havia dito coisas sobre a escrita e a morte, que eram iguais às que pensavam ser só suas. Em terceiro lugar, o livro vai interessar a um público que não é nem
de jovens nem de velhos escritores, mas de pessoas sensíveis que acompanham o que Fernando chama de "movimentos simulados" da alma humana. A primeira coisa que pensei foi essa: como é que esses dois danadinhos,
Fernando com 23 anos, você com 26, já tinham tal maturidade e responsabilidade diante do fenômeno da criação e do compromisso literário. Neste sentido, esse volume de "Cartas perto do coração" remete para "Cartas a um jovem escritor", que Fernando publicou em 1982, reunindo missivas entre ele e Mário de Andrade. Mas que sortudo esse Fernando. Aliás, não é sorte, eu sei. Que aguda percepção dele estabelecer esse diálogo com duas pessoas de tão alta estirpe criativa.
Imagino um proustiano  apaixonado lendo naquela sua carta de Paris que "a Albertina de Proust" ainda existe e tem um restaurante, só que Albertine é um Albertino, sempre foi, e hoje está bem gordo, com grandes bigodes. Albertino era um rapazinho empregado no hotel Ritz e Proust fez uma ótima transposição colocando o caso todo com uma mulher".
Engraçado que às vezes, sobretudo nas primeiras cartas, vocês passaram -me a impressão de que a força criativa borbulhava, juvenilmente, de tal  modo que esssas cartas se transformavam em crônicas, pedaços de poemas, diários e experimentação de linguagem. Claro que há algumas cartas mais informativas. Mas há também aquelas anotações curiosas, imagine! 30 páginas de cortes e alterações que Fernando sugeriu para "A maçã no escuro". Ah! se todo escritor pudesse ter um amigo que fizesse esse laboratório de textos. Fernando já havia em outros livros - "O tabuleiro de damas", por exemplo - traçado o percurso de sua formação intelectual. Mas quanto à você, Clarice, as coisas estão esparsas em entrevistas e em muitas teses e biografias. Mas essas cartas tornam mais claro o percurso de cada um, e no seu caso, interessante saber de músicas que ouvia, teatros a que assistia, exposições que viu, gente que foi  encontrando. Engraçada aquela sua insistência em querer assinar as crônicas na "Manchete" com o psedônimo Teresa Quadros. E é sintomático que vocês dois, lá pelas tantas, debruçam-se sobre " A imitação de Cristo".
E os projetos começados e abandonados? Livros esboçados e metamorfoseados? São inúmeros. Mas uma coisa, entre tantas, foi-se desenhando em minha cabeça: como o ano de 1956 foi importante em nossa literatura. Vocês dois (as pessoas sensíveis do país) ficaram então estatelados diante da genialidade do recém-lançado "Grande sertão:veredas". Mas naquele ano surgiu
também "O encontro marcado" do Fernando, que você comenta amorosamente, dizendo-se pertencer também àquela geração. Mas interessante é que o seu "A maçã no escuro" foi terminado também em 1956, embora só viesse a público em
1961. E você diz: "É curioso como seu livro e o meu tem a mesma raíz". E mais: "Fernando, o fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu, não é começo de maturidade?". Por isto é que penso que 1956 é um ano realmente singular. Seria deliciosamente instrutivo fazer uma leitura desses dois livros assinalando como ambos, sem misticismo, tratam o fazer artístico
como uma questão de "salvação e perdição".
De resto, minha querida, vendo em suas cartas as dificuldades que tinha para publicar seus livros, informo-lhe que seus livros estão arrasando em vários países, e ainda agora uma tradutora minha na Eslovênia me diz que quer traduzir suas cartas e o Othon Bastos me revelou que quer fazer um espetáculo com esta admirável correspondência com o Sabino, aquele que nasceu homem e cada vez fica mais menino.

Seu, ars

                                Affonso Romano Sant'anna

Carta publicada no Jornal "O Globo"  no dia 17 de novembro de 2001, RJ
Enviada por: Márcia Maia

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