Cardiff, 12 abril 1905.

Amigo Batista Xavier — Bato com estas tiras de papel às portas do seu jornal. São resposta a um artigo do Correio do Povo de 2 de fevereiro, que só agora me chegou às mãos, escrito pelo Sr. Homero Batista (nunca vi mais gordo), a pretexto de umas facécias de La Nacion de Buenos Aires sobre um trecho de uma carta íntima por mim dirigida ao tradutor do meu romance O Mulato.

Não daria tal resposta, se aquele senhor se contentasse em alfinetar o meu modesto nome de autor com as suas inofensivas ironias, mas o demônio do homem vai muito mais longe: nem só procura intrigar-me com os meus compatriotas do Rio Grande, apontando-me como ingrato brasileiro e mau representante de minha pátria no estrangeiro, como ainda por cima tenta excitar a velha e estúpida prevenção que, apesar do esforço de algumas pessoas bem intencionadas, persiste entre brasileiros e argentinos de certa ordem.

É triste que haja brasileiros capazes de fazer dessa ridícula prevenção um dos aferidores do seu patriotismo, e o autor do tal artigo pertence a esse desvairado grupo; aos seus olhos quixotescos, os inocentes motejos do jornal argentino tomaram logo gigantescas proporções de "períodos venenosos", e ei-lo a investir contra mim às cabeçadas, sem ver onde punha os pés, invadindo todos os terrenos, até o dos pobres cocheiros, a quem me parece deve pertencer por direito de conquista o terreno da mentira.

Entre outras cousas, eis o que ele diz:

Não sei medir o que mais desagradou-me: se o desconforme da expressão, se o desacerto dos conceitos emitidos pelo romancista. Quero fazer-lhe uma concessão: agiu irrefletidamente. Ao ver a tradução d'O Mulato, a vanglória, de asas pandas, levou-o até ao deslumbramento. Sentiu-se superior ao meio em que se fez escritor de distinção, etc.

"Para aquilatar da injustiça praticada pelo escritor brasileiro, citarei este fato. Não quis verificar o grau de aceitação das obras de Aluízio pelas três delas que honram minhas estantes; fui procurá-las na biblioteca desta pequena cidade, esquecida num recanto da nossa fronteira, e ali encontrei os quatro seguintes: O Mulato, 2ª edição de 1889, O Cortiço, 4ª edição, Casa de Pensão, 3ª edição e O Homem, 5ª edição. Creio que não serão essas as últimas edições desses romances. Por elas e pelo uso constante que denotam ter, nesta cidade, pode-se dizer com segurança que são aceitos e lidos com satisfação. A julgar por esse fato, aqui ocorrido, os romances de Aluízio gozam de muita aceitação e estima nesta terra brasileira, que ele acaba de desprestigiar, deprimindo sua língua e seu meio literário. Não posso crer que os conceitos de Aluízio, na carta a La Nacion traduzem uma gentileza ao jornal platino, no pressuposto deste exultar com o nosso descrédito e com os louvores à língua castelhana. Seria seu ato, então repulsivo. Como quer que seja, sua conduta é injustificável; e a cada um de nós que preza a boa fama de sua Pátria, assiste o direito de censurar o escritor que tão mal corresponde ao apreço de seus compatriotas, e o cônsul que espontaneamente e infundada-mente espalha o desprestígio do país que representa. Vejo que, despercebidamente,
emaranhei-me demais no assunto. Eu apenas queria chamar a sua atenção para o triste sucesso e pedir que o amigo ou o ilustre Leopardo, que bem manejam a nossa ultrajada língua, desse uma lição de civismo a esse escritor, que fez praça de desamor e de ingratidão ao nosso país."

Quanta cousa falsa!

Nunca escrevi carta a La Nacion, como, aliás, vem explicitamente declarado no trecho transcrito no próprio artigo do Sr. Homero; "Uma carta que dirigiu de Inglaterra a seu tradutor, na qual..."; nunca exultei com o nosso descrédito, nem procurei desacreditar a quem quer que seja, nem posso tampouco compreender como tantas cousas feias se depreendam do rápido elogio que fiz à língua castelhana, chamando-lhe apenas "ilustre e lida". Desafiou outrossim a que me mostrem no trecho publicado uma única palavra a respeito do Brasil ou do nosso meio literário. — A minha carta a Costa Alvarez não pode ser mais intima, nem de estilo mais familiar, é uma carta de amigo sem a menor pretensão à publicidade, na qual, só por incidente, lhe agradeço a sua tradução e lhe peço, como era do meu dever, transmitir iguais agradecimentos a La Nacion, acompanhando tudo isso com um velho remoque à língua portuguesa, que, disse eu, "non es sino un cementerio de ideas y pensamientos". — Disse, porque assim o entendo, e agora, transformando o motejo em formal declaração, acrescento que esse frio cemitério regurgita de nomes dignos de melhor sorte, dignos de luzir além, lá no alto, no apogeu da fama, no fulgor da glória universal e eterna em que vemos os nomes de Cervantes, de Föe, de Bocaccio, de Raspa (Munckhausen), de Gogol ou de Le Sage. — Ao contrário porém disso, todo o longo e inapreciável cortejo apontado pelo Sr. Homero, desde Sá de Miranda até o nosso Gama, todo ele, exceção feita de Camões, jaz esquecidamente sepultado para a grande parte do mundo, e a memória dos seus altos pensamentos e das suas divinas idéias só persiste na sincera, mas estreita, adoração de alguns portugueses e de alguns brasileiros cultos. — E a todos os cordões de poetas e prosadores que vieram ao depois escravizados à mesma língua, todos eles não tiveram nem terão melhor destino; hão de suas vozes quedar abafadas pelo mármore que as sepulta.

Quem conhece o nosso idioma, está farto de saber que em beleza não cede ele o passo a nenhum outro, nem se pode conceber língua mais rica, mais harmoniosa, mais literária e enfim mais completa. Nada disso, porém, impede que ela seja infelizmente pouco lida, e por conseguinte obscura. — Quer o Sr. Homero que ela seja falada por 25 milhões de pessoas, e lida e compreendida por maior número. Aí está um dos seus enganos. Compreendida será ou não será, lida é que não é com certeza, e, para que uma língua não seja obscura e sim ilustre, não lhe basta ser falada por muita gente, tem que ser igualmente lida. O chinês é longo tempo o idioma falado no mundo por maior número de indivíduos, e isso não lhe tira de ser tão obscuro como o holandês ou o polaco. — Língua ilustre não quer dizer língua bela, mas sim corrente, universalmente conhecida e celebrizada. O inglês é uma língua paupérrima, sem harmonia, sem lógica, impulsionada como um automóvel por explosões contínuas, mas é um língua ilustre, perfeitamente ao inverso da portuguesa que é formosa e riquíssima, mas obscura, porque no mundo, pelo menos por enquanto, a sua cotação é íntima em comparação àquela e outras. — E porque sustento eu esta inexorável verdade. pareço aos olhos do Sr. Homero o menos patriótico dos brasileiros, como se patriotismo fosse cousa que se pudesse sustentar com falsas alegações. — Imagine-se quão ridículo não seria um japonês que, para ostentar patriotismo, pretendesse fosse a sua língua mais ilustre e corrente que a castelhana! Entretanto, note-se bem que a língua japonesa é lida, positivamente lida, por mais de quarenta milhões de indivíduos.

O erro principal do Sr. Homero talvez consista na interpretação que dá ele ao termo i1ustre e restringindo-o ao sentido de preclaro e insigne, quando hoje esta palavra quer dizer célebre, mais que célebre, significa uma certa notoriedade universal, que só mesmo aquele galicismo pode exprimir com precisão. —  Da obscuridade ou da celebridade de qualquer língua participam, em linha direta e na proporção do seu valor, os que nela escrevem. Quem conhecer por exemplo a obra de Castelo Branco e conhecer também a de Gaboriau, de Paul Féval ou de Ponson du Terrail, não porá dúvida que a destes não vale a quarta parte da obra do escritor português, e, no entanto, qualquer dos três franceses têm muito maior fama e maior nome do que ele. O mesmo, sem tirar nem pôr, acontece com Georges Ohnet comparado a Júlio Diniz, com Pierre Loti comparado a Ramalho Ortigão, e com Prosper Merimée a Bento Moreno. O ratão de Paulo de Koch ou o estrambótico Xavier de Montepin são mais celebrizados e por conseguinte mais ilustres que o mais celebrizado romancista português, porque a língua francesa dá àqueles elementos de celebridade que a este não pode dar a portuguesa. — Com as outras línguas vulgarizadas acontece a mesma cousa. Compare-se o nome, já não direi de Dickens, mas de Goldsmith, ou de Turgenev ou mesmo de Escrich, com o do adorável Eça de Queiroz; compare-se o nome do nosso José de Alencar com o de Cooper ou de Harriett Beecher; oponham-me o nome de um novelista, da língua portuguesa ao nome de Vélez de Guevara, ou de Walter Scott, ou de Manzoni, ou de Edgard Poe, ou de Goethe, ou de Tolstoi, ou de Dostoiewski, ou dos moderníssimos D'Annunzio e Gorki. — Estará Gonçalves Dias ao lado dos que de fato deveriam ser seus pares, ao lado de Schiller, ou de Pope, de Musset, ou de Espronceda? Qual! nem se quer emparelha o vôo com Alfredo de Vigny e é até menos conhecido que o medíocre Becquer, autor das célebres Golondrinas.

E porque não se assenta Garrett ao lado de Byron, de Longfellow ou de Lamartine? E porque não tem Alexandre Herculano a auréola de Chateaubriand ou de Edgar Quinet? Será por falta de merecimento próprio? Ninguém o crê. — E se entrarmos pelo passado até os clássicos, iríamos encontrar a mesma desoladora iniqüidade nessa partilha de celebrização e de fama. Basta dizer que Nicolau Tolentino e Diniz são muito menos cotados na literatura universal do que Piron e Quevedo, cujo real merecimento não chega ao daqueles dois. E quem conhece fora de Portugal e do Brasil um poeta que se chamou Bocage? Quem por lá conhece um prosador que se chamou Antônio Vieira? E deste era tal o valor, que ele deixou nome na Itália, mas não como escritor português e só pelos eloqüentes discursos em latim que proferiu em Roma. Uma língua morta pode dar ao seu talento a supervivência que lhe negou para além da pátria a sua própria língua viva. — Toda a preclara tribo dos quinhentistas portugueses, onde há patriarcas como Damião de Góis, Lucena, Luiz de Sonsa, Rezende, Freire de Andrade e tantos outros, não passa, para a gente culta que não fala a nossa língua, de uma impenetrável nebulosa, cujas estrelas de desconhecida grandeza nem sequer figuram de nome na maior parte dos dicionários bibliográficos que correra mundo. — Só Camões, repito, escapou desse imerecido obscurecimento, como para levar além de Portugal a notícia de que existia na Europa uma língua chamada portuguesa. E esse mesmo, coitado! sabe Deus como é às vezes tratado por esse mundo de Cristo: uns o querem imitador do Tasso, outros lhe chamam — "Épico espanhol".

Na minha peregrinação longe do Brasil, quando encontro gente com fumaças de filologia comparada, afetando não ignorar da existência da língua portuguesa, já tremo de antemão, porque sei que vou ouvir dislates do seguinte teor: "O português é o mais belo dialeto da língua castelhana", ou "O português nada mais é que o espanhol mal falado — o português é para o espanhol o que o auvergnat é para o francês", ou "O espanhol que se fala em Portugal é o mesmo que se fala na Galiza". — E tudo isso por quê? Só porque a língua portuguesa, apesar de encantadora, é desgraçadamente ignorada e obscura.

Uma vez, quando Ramalho Ortigão, de passagem no Rio de Janeiro, pronunciou um solene discurso no Gabinete Português de Leitura, ouvi dizer a esse belo escritor que o Brasil "havia recebido de Portugal dois presentes reais — a escravidão e a língua portuguesa" — Dois belos presentes, não há dúvida! Do primeiro já nos livramos, e sei o trabalho e os sacrifícios que isso custou a muita gente, mas do segundo não será tão cedo: temos que esperar que a língua brasileira se forme de todo, como lentamente já se vai formando, e se emancipe afinal da língua-mater, e se apure na obra de um Camões brasileiro, e então, falada, escrita e lida por mais de cem, de duzentos milhões de habitantes do Brasil, se espalhe e se imponha triunfante por toda a superfície do globo. — Pelo exposto, já vê o Sr. Romero que não foi por irreflexão que chamei a língua portuguesa "cemitério de idéias e pensamentos", e vai ver também que isso não foi tampouco pelo "deslumbramento" que me causou ver um dos meus livros traduzidos para o castelhano. — Esse pueril deslumbramento (e quem mo dera agora!) tive-o eu, feliz e completo, há mais de vinte anos, quando o Dr. Labarriêre, de saudosa memória, traduziu para o francês, no seu jornal Le Brésil, aquele mesmo meu romance O Mulato. Então sim, o entusiasmo afogou-me o coração de alegria, fazendo-me até esquecer por um doce instante as amarguras que eu curtia na dura existência de escritor brasileiro; mas depois, ao ver o meu Livro de uma sogra vertido para o espanhol, aliás com muita competência e com amor, pelo poeta madrileno Aureleo Romero, em lindo volume precedido de minha biografia, não há dúvida que me senti lisonjeado e grato, senti prazer, mas nesse prazer, confesso, já não havia o menor vislumbre do primitivo arrebatamento. — E, se eu aos vinte anos, não cheguei a perder de todo a cabeça com a rotineira tradução do O Mulato, quando a tinha cheia de ilusões, porque haveria de perdê-la agora quando a tenho cheia de desenganos e de cabelos brancos? Além disso, O Mulato, muito antes de aparecer em volume na Biblioteca de La Nacion, tinha sido já traduzido em Buenos Aires e dado em folhetins naquela mesma folha. Ora, parece-me que, se as traduções de meus livros tivessem com efeito a inquietante propriedade de fazer-me perder a cabeça, já a experiência me haveria ensinado a ter mão nela nesses momentos de apuro, e com certeza a tradução do meu amigo Costa Alvarez não me apanharia desprevenido. — O que é para fazer perder a cabeça, ou pelo menos a paciência, é a pretensão do Sr. Homero em querer fazer de mim um inimigo da língua portuguesa e de si um defensor dela, quando eu, a essa retraída e formosa deusa, consagrei a minha mocidade e as minhas vigílias, amei-a, não com palavras, mas com obras, não sonhando, mas trabalhando, e o meu amor não foi corno esse que o Sr. Homero alardeia agora, foi fecundo, seus frutos lá estão, para prova, na própria estante de livros desse platônico namorado, que naturalmente não pode ver com bons olhos uma feliz paternidade desse gênero. — E do mesmo modo que é ele, e não sou eu, o amigo da língua em que escrevi todas as minhas obras, assim é ele, e não sou eu, o amigo da pátria, que eu nelas procuro estudar e servir. — O seu patriotismo é como o seu grande amor pela língua pátria, só se demonstra no ardor do ataque com que aos outros nega esses naturais sentimentos. - Por afirmar arrogantemente a minha falta absoluta de patriotismo, supõe ele deixar bem evidenciado que o possui em grau elevadíssimo, e tão longe vai na fúria de tal demonstração que, não contente com chamar sobre minha pobre cabeça o anátema geral, açula contra mim, para me dar lições de civismo, nada menos que um — leopardo.

Entretanto, enquanto eu mourejava no Brasil a fazer livros, uns após outros, sem resfolegar, procurando, bem ou mal, na medida das próprias forças dar combate a todos os males, a todos os vícios, a todos os defeitos e preconceitos inimigos de minha terra, e procurando, por outro lado, pôr em relevo as suas belezas e as suas virtudes, que diabo andaria fazendo pelo Brasil aquele grande patriota, para que seu nome só a mim chegasse pela primeira vez trazido agora pela sua maldição? — Não sei. — E a estas horas, no momento atual, enquanto um dos meus livros em pleno vigor dos seus 25 anos, é consagrado num país estrangeiro, honrando consegüintemente a terra donde ele saiu e o povo donde saiu o seu autor, que faz, em bem da pátria, o grande patriota? — Não sei o que fará ele além do seguinte: chamar-me "desprestigiador de minha terra" e "escritor ingrato". — Paciência! Todavia é preciso que o Sr. Homero saiba de uma cousa: eu, na minha humilde qualidade de escritor, não sou nem posso ser ingrato para com o público que me leia ou porventura me aplauda, pois, o publico jamais lê ou aplaude por obséquio a quem quer que seja. — O público nunca faz favor a ninguém, faz justiça, e a justiça não reclama gratidão de quem a recebe.

Do mesmo modo que eu nunca me poderia revoltar contra o público se ele me voltasse o rosto, nada também lhe fico a dever no caso que aplauda meus livros. — Nada, absolutamente nada, devo pois aos meus leitores, caso existam; ao contrário, se, com efeito, como diz o muito patriota Sr. Homero meus livros são em nossa terra "bem aceitos e lidos com satisfação", quem tem de agradecer a satisfação recebida, são naturalmente os meus leitores a mim, e não eu a eles o trabalho que tive em procurar diverti-los a escrever os meus romances. — Quanto ao direito de cada qual me censurar por ter eu, segundo julga o Sr. Homero, mal correspondido ao apreço dos meus compatriotas, chamando a nossa língua cemitério, isto é lá com a competência de cada um, os nossos patrícios não precisam de que ninguém se encarregue de pensar por eles, pensam por conta própria, e muitos talvez ju1guem da língua portuguesa ainda pior do que eu julgo.

Enfim, para outra vez, quando se meter o Sr. Homero a defender em público a língua de Camões, nunca mais deixe escapar frases como estas e outras das suas:

"Não sei medir o que mais desagradou-me."

"Nenhum deles sentiu-se."

Pois isso, meu caro, e não as minhas pancadas de amor, é que deveras ofende e envergonha a língua portuguesa.

                                                                                 Aluízio Azevedo

« Voltar