La Plata, 26 setembro 1901.

Meu bom Lúcio - Se as apoquentações desta Niterói argentina me tivessem já envenenado de todo o ânimo com pessimismo e amargura, a tua carta só por si me curaria de semelhante morbus; além de uma boa colherada de esperança, tonificou-me ela com um hausto de amizade e franqueza em primeira mão. Que consolo! Obrigado. Li-a como leio as cartas do Artur - com o coração nos olhos e a alma escancarada. Graças que não me sinto esquecido e desamparado! Bem sei que o Olinto pode talvez descascar-me das Relações Exteriores antes de lhe aparecer vez de meter-me em linha no quadro consular; sei que, com o caminho que leva a intriga feita dia a dia pela Prensa, a guerra de quarentenas contra o Brasil está prestes a travar-se de novo, e com ela a terrível situação do ano passado, que me deixou a ver navios - em lastre e vencimentos por um óculo; mas sei também, meu bom Lúcio, que do teu fecundo interesse por mim alguma semente há de pesar e há de florescer, apesar da indiferença da terra em que semeias. Também a bordo, em mar contrário, o reverso estômago do infeliz enjoado rejeita tudo que lhe dão; mas, entre carga e descarga, já fica sempre algum resquício de alimento, que serve de resistência até ao porto de salvamento. Hei de agüentar-me até chegar. - A minha situação aqui não seria tão arriscada, se não fosse a constante ameaça das tais quarentenas; pondo porém de parte o interesse próprio, revolta e dói a guerra que, com esse pretexto nos faz a imprensa argentina, mormente a Prensa, que entre ela é a folha de mais eco. É tão calva a má vontade a nosso respeito, que, enquanto se fala de peste bubônica, não aparece uma palavra sobre febre-amarela, como se de repente este mal tivesse desaparecido por encanto; mas, desde que se esgote a bubônica, aí volta todos os dias uma ferroada contra o Brasil a propósito da formosa febre. E, como aqui os artigos de jornal são à moda norte-americana, encabeçados de muitos e gordos títulos, vai a perfídia ao ponto de imprimir no escandaloso sumário em letras enormes: "Febre-amarela no Rio de Janeiro", e embaixo, na discriminação da notícia: "Até agora não fez ainda este ano no Brasil a explosão que costuma fazer o terrível flagelo". Com a peste bubônica dá-se o mesmo: antes de se terem desenvolvido as perversas noticiazinhas que ultimamente vêm na Prensa, já muito antes, só para dizer ao público que não havia peste bubônica no Brasil, vinha todos os dias um telegrama do seguinte teor: "O Brasil e a peste bubônica", ou ainda "As pestes no Rio de Janeiro". E isto sempre, sempre, desde Ano Bom a S. Silvestre, pingando gota a gota, com uma tal maldade, que, francamente, a vontade que dá à gente é, se fosse governo, arrumar logo p'ra aí com cinqüenta dias de quarentena contra a Argentina, e deixar que esta bufasse embuchada com a sua farinha e com todo o seu charque, que no Brasil tem o melhor e único mercado sério para expansão.
A "Semana brasileira", que é como aqui se chama a visita Campos Sales, foi um manhoso parêntesis nessa odiosa campanha, e temo, visto não haver esperança de nova visita presidencial, que as cousas voltem afinal ao descalabro do ano passado. Outro objeto de intriga jornalística contra o Brasil são as boas relações internacionais deste com o Chile, e essa não me parece menos odiosa e ridícula. A Prensa não dá notícia, nem telegrama do mais simples ato brasileiro referente àquela república nossa amiga, sem carregar intencionalmente nas cores dos adjetivos de ternura, de modo a fazer crer à intransigência patriótica do argentino que nós, apesar deste não admitir senão ódio pelo Chile, vivemos em perenal e calculado idílio com os chilenos. Não sei quem é aí no Rio o correspondente telegráfico da Prensa mas seja quem for, pode gabar-se dos seus bons serviços à causa que serve e de ter conseguido a primor o seu desíderatum, reduzindo até o governo argentino de decretar quarentena de seis papelão, pois a verdade é que não há até agora declaração oficial do Brasil a respeito de peste bubônica e, a despeito de que os cônsules argentinos no Brasil, segundo afirma a própria Prensa, confessaram não haver se declarado aquela peste nos seus competentes distritos consulares, acaba o governo deste complicado país a verdadeira figura de dias para as procedências do Rio de Janeiro.
Já vês que se não pode dizer que a cousa não passa de molecagens de jornal. - E isto de quarentenas argentinas é como comer e coçar. Elas nada mais são do que azedume e ressentimento contra nós; é a tal questão do tratado definitivo, em cuja isca o Brasil não mordeu, e é o fato de conservarmos com o Chile as estreitas relações que sempre tivemos. - Esquecem-se estes senhores argentinos que não é com vinagre que se apanham moscas, quanto mais macacos, que é bicho muito mais esperto. Não se lembram eles de que, enquanto para a Argentina o Brasil era um país de escravos e continua a ser um país de negros e de outras cousas piores, não perdia e não perde o Chile ocasião de tomar-nos a sério, respeitando--nos como a mais honesta, a mais pujante e a mais equilibrada das nações sul-americanas. - E, à falta de outra arma, essa inconfessável guerra de quarentena, procurando agravar o descrédito de salubridade do Brasil não só com a velha chapa da febre-amarela, mas ainda com a outra, nova em folha, da peste bubônica. Oh! faz raiva semelhante guerra, principalmente pela estupidez que a reveste: o Brasil, para expansão dos seus produtos, exceção feita do mate, pode sem sacrifício dispensar o mercado argentino, ao passo que a Argentina, desde que lhe fechem as portas de Santos, Rio, Bahia e Pernambuco, há de fatalmente cair em crise financeira, porque ela com o Chile não quer negócio e com a República Oriental bem pouco contará. Não me posso enganar a esse respeito, sou número um neste consulado, todos os despachos de navio para o Brasil são feitos por mim exclusivamente, e estou também a par do que se passa no consulado de Buenos Aires. A Argentina precisa comercialmente muito mais do Brasil do que este precisa dela, e, apesar de que a minha posição neste pirrônico emprego depende das quarentenas, digo e repito, - o meu gosto seria ver o Brasil carregar-lhe em represália uma surra de quarentenas, não de dias, mas de meses. a ver se então a fanfarrona voltaria contra nós as armas que tem aparelhadas contra o Chile.
E por tudo isso, meu bom Lúcio, quando o nosso Pontes me comunicou ultimamente que o Olinto lhe prometera (e lhe autorizara a comunicar-me) pedir ao Congresso (não sei se para consulado ou vice-consulado) verba aqui para La Plata, conservando-me no cargo, tive grande satisfação, porque, muito ou pouco, um ordenado certo me deixaria a abrigo das vicissitudes emolumentares produzidas pelas quarentenas ou, melhor, pelas intrigas da Prensa, e bem ou mal me arrancaria deste penoso estado de incerteza e sobressalto incompatível com qualquer equilíbrio de vida e com a linha que deve ter quem representa o seu país. Perdoa-me esta choradeira, mas a falta de expansão não é das menores provas desta marombagem em que vivo. Não exagerei minha alegria ao sorver as palavras de esperança que me mandaste, nem creio o Olinto tão perverso que se estivesse a divertir com a agonia de um quase afogado. Se ele tem, com efeito boa vontade a meu respeito e se, até largar a pasta, não se lhe oferecer uma vaga em que me arrume, pode então, atendendo aos meus serviços nesta carreira, a contar de 31 de dezembro de 1895, quando fui nomeado para Vigo, e atendendo ao muito que ao serviço dela tenho amargado, pode então fazer uma cousa - mandar considerar-me cônsul de carreira (para isso fiz o meu exame na Secretaria) e mete-me no quadro, pois que assim o seu sucessor muito mais facilmente me daria lugar definitivo. - Adeus. Vou juntar a esta carta alguns dos últimos números da Prensa. - Teu Aluízio.

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