Meu bom Lúcio - Se as apoquentações
desta Niterói argentina me tivessem já envenenado de todo
o ânimo com pessimismo e amargura, a tua carta só por si me
curaria de semelhante morbus; além de uma boa colherada de esperança,
tonificou-me ela com um hausto de amizade e franqueza em primeira mão.
Que consolo! Obrigado. Li-a como leio as cartas do Artur - com o coração
nos olhos e a alma escancarada. Graças que não me sinto esquecido
e desamparado! Bem sei que o Olinto pode talvez descascar-me das Relações
Exteriores antes de lhe aparecer vez de meter-me em linha no quadro consular;
sei que, com o caminho que leva a intriga feita dia a dia pela Prensa,
a guerra de quarentenas contra o Brasil está prestes a travar-se
de novo, e com ela a terrível situação do ano passado,
que me deixou a ver navios - em lastre e vencimentos por um óculo;
mas sei também, meu bom Lúcio, que do teu fecundo interesse
por mim alguma semente há de pesar e há de florescer, apesar
da indiferença da terra em que semeias. Também a bordo, em
mar contrário, o reverso estômago do infeliz enjoado rejeita
tudo que lhe dão; mas, entre carga e descarga, já fica sempre
algum resquício de alimento, que serve de resistência até
ao porto de salvamento. Hei de agüentar-me até chegar. - A
minha situação aqui não seria tão arriscada,
se não fosse a constante ameaça das tais quarentenas; pondo
porém de parte o interesse próprio, revolta e dói
a guerra que, com esse pretexto nos faz a imprensa argentina, mormente
a Prensa, que entre ela é a folha de mais eco. É tão
calva a má vontade a nosso respeito, que, enquanto se fala de peste
bubônica, não aparece uma palavra sobre febre-amarela, como
se de repente este mal tivesse desaparecido por encanto; mas, desde que
se esgote a bubônica, aí volta todos os dias uma ferroada
contra o Brasil a propósito da formosa febre. E, como aqui os artigos
de jornal são à moda norte-americana, encabeçados
de muitos e gordos títulos, vai a perfídia ao ponto de imprimir
no escandaloso sumário em letras enormes: "Febre-amarela no Rio
de Janeiro", e embaixo, na discriminação da notícia:
"Até agora não fez ainda este ano no Brasil a explosão
que costuma fazer o terrível flagelo". Com a peste bubônica
dá-se o mesmo: antes de se terem desenvolvido as perversas noticiazinhas
que ultimamente vêm na Prensa, já muito antes, só para
dizer ao público que não havia peste bubônica no Brasil,
vinha todos os dias um telegrama do seguinte teor: "O Brasil e a peste
bubônica", ou ainda "As pestes no Rio de Janeiro". E isto sempre,
sempre, desde Ano Bom a S. Silvestre, pingando gota a gota, com uma tal
maldade, que, francamente, a vontade que dá à gente é,
se fosse governo, arrumar logo p'ra aí com cinqüenta dias de
quarentena contra a Argentina, e deixar que esta bufasse embuchada com
a sua farinha e com todo o seu charque, que no Brasil tem o melhor e único
mercado sério para expansão.
A "Semana brasileira", que é como aqui
se chama a visita Campos Sales, foi um manhoso parêntesis nessa odiosa
campanha, e temo, visto não haver esperança de nova visita
presidencial, que as cousas voltem afinal ao descalabro do ano passado.
Outro objeto de intriga jornalística contra o Brasil são
as boas relações internacionais deste com o Chile, e essa
não me parece menos odiosa e ridícula. A Prensa não
dá notícia, nem telegrama do mais simples ato brasileiro
referente àquela república nossa amiga, sem carregar intencionalmente
nas cores dos adjetivos de ternura, de modo a fazer crer à intransigência
patriótica do argentino que nós, apesar deste não
admitir senão ódio pelo Chile, vivemos em perenal e calculado
idílio com os chilenos. Não sei quem é aí no
Rio o correspondente telegráfico da Prensa mas seja quem for, pode
gabar-se dos seus bons serviços à causa que serve e de ter
conseguido a primor o seu desíderatum, reduzindo até o governo
argentino de decretar quarentena de seis papelão, pois a verdade
é que não há até agora declaração
oficial do Brasil a respeito de peste bubônica e, a despeito de que
os cônsules argentinos no Brasil, segundo afirma a própria
Prensa, confessaram não haver se declarado aquela peste nos seus
competentes distritos consulares, acaba o governo deste complicado país
a verdadeira figura de dias para as procedências do Rio de Janeiro.
Já vês que se não pode dizer
que a cousa não passa de molecagens de jornal. - E isto de quarentenas
argentinas é como comer e coçar. Elas nada mais são
do que azedume e ressentimento contra nós; é a tal questão
do tratado definitivo, em cuja isca o Brasil não mordeu, e é
o fato de conservarmos com o Chile as estreitas relações
que sempre tivemos. - Esquecem-se estes senhores argentinos que não
é com vinagre que se apanham moscas, quanto mais macacos, que é
bicho muito mais esperto. Não se lembram eles de que, enquanto para
a Argentina o Brasil era um país de escravos e continua a ser um
país de negros e de outras cousas piores, não perdia e não
perde o Chile ocasião de tomar-nos a sério, respeitando--nos
como a mais honesta, a mais pujante e a mais equilibrada das nações
sul-americanas. - E, à falta de outra arma, essa inconfessável
guerra de quarentena, procurando agravar o descrédito de salubridade
do Brasil não só com a velha chapa da febre-amarela, mas
ainda com a outra, nova em folha, da peste bubônica. Oh! faz raiva
semelhante guerra, principalmente pela estupidez que a reveste: o Brasil,
para expansão dos seus produtos, exceção feita do
mate, pode sem sacrifício dispensar o mercado argentino, ao passo
que a Argentina, desde que lhe fechem as portas de Santos, Rio, Bahia e
Pernambuco, há de fatalmente cair em crise financeira, porque ela
com o Chile não quer negócio e com a República Oriental
bem pouco contará. Não me posso enganar a esse respeito,
sou número um neste consulado, todos os despachos de navio para
o Brasil são feitos por mim exclusivamente, e estou também
a par do que se passa no consulado de Buenos Aires. A Argentina precisa
comercialmente muito mais do Brasil do que este precisa dela, e, apesar
de que a minha posição neste pirrônico emprego depende
das quarentenas, digo e repito, - o meu gosto seria ver o Brasil carregar-lhe
em represália uma surra de quarentenas, não de dias, mas
de meses. a ver se então a fanfarrona voltaria contra nós
as armas que tem aparelhadas contra o Chile.
E por tudo isso, meu bom Lúcio, quando
o nosso Pontes me comunicou ultimamente que o Olinto lhe prometera (e lhe
autorizara a comunicar-me) pedir ao Congresso (não sei se para consulado
ou vice-consulado) verba aqui para La Plata, conservando-me no cargo, tive
grande satisfação, porque, muito ou pouco, um ordenado certo
me deixaria a abrigo das vicissitudes emolumentares produzidas pelas quarentenas
ou, melhor, pelas intrigas da Prensa, e bem ou mal me arrancaria deste
penoso estado de incerteza e sobressalto incompatível com qualquer
equilíbrio de vida e com a linha que deve ter quem representa o
seu país. Perdoa-me esta choradeira, mas a falta de expansão
não é das menores provas desta marombagem em que vivo. Não
exagerei minha alegria ao sorver as palavras de esperança que me
mandaste, nem creio o Olinto tão perverso que se estivesse a divertir
com a agonia de um quase afogado. Se ele tem, com efeito boa vontade a
meu respeito e se, até largar a pasta, não se lhe oferecer
uma vaga em que me arrume, pode então, atendendo aos meus serviços
nesta carreira, a contar de 31 de dezembro de 1895, quando fui nomeado
para Vigo, e atendendo ao muito que ao serviço dela tenho amargado,
pode então fazer uma cousa - mandar considerar-me cônsul de
carreira (para isso fiz o meu exame na Secretaria) e mete-me no quadro,
pois que assim o seu sucessor muito mais facilmente me daria lugar definitivo.
- Adeus. Vou juntar a esta carta alguns dos últimos números
da Prensa. - Teu Aluízio.