Araraquara, S. João de 1925

Manuelucho

Imagine: tivemos um S. João com festa guassú, baile na fazenda Monte Alto, 18.000 arrobas, gente rica, jazz-band, vinho do Porto, moças vindas de S. Paulo com um dia inteirinho de automóvel na bunda, uma porcariada sem carater, nem violão nem noite escura, nem noite fria, vinte dois automóveis entre fortes, dodges, studebakers e hupmobiles, até uma Nash! nem siquer uma sanfona que si você não sabe fique sabendo, é o instrumento nacional paulista que até negros tocam aprendendo do italiano. Puta-vida! como diz o snr. Cesare Anselmi, imigrante, dono de terras 80.000$000 honestos, só dele e que nunca mais se lembrou da existência da Itália, assinante do Estado de São Paulo. Puta-vida! êle diz até na frente de dona Hilda, minha prima, minha hospeda, paranaense da gema.

Piá é uma palavra linda mesmo. Quer dizer criança. Se usa ainda no Norte. Ainda mais lindo você achará sabendo que si se emprega pra significar menino, mesmo entre os indios, tem como significado literal: coração. Treler, não sei si é caipira, isto é, paulista. Me parece que sim. Significa: mexer intrometidamente em. Não é bem bolir com. É mais falar numa coisa que não é da conta da gente. Está empregado com exatidão vocabular absoluta na Carta ao Príncipe.

Gostei de você gostar da Carta. Fiz as correções. Uma delas depois de feita me arrependi. Mas já está feita e não tem grande importância. É aquela sobre as brigas-de-comadres entre os modernistas. Era mais pra estes que eu me dirigia que pro Alberto de Oliveira saber. E não faz mal que saiba. É tão dolorosamente ridículo! (1)

Então você não foi ao, jantar do Graça. Que graça (sem trocadilho) achei nisso. O Graça não cita você, você o aplaude (2). Corrige e cita em livro, você foge. Ri, ri, que não foi vida! Olhe: não aplaudo nem critico. É uma dessas coisas tão engraçadas que não podem ser condenadas. Demais você tem razão e pode ainda ter outras razões que eu desconheça. No seu lugar, pensando bem, acho que eu não iria também. Por mim, si eu estivesse ai, iria. iria na onda, essas coisas não tem a mínima importância. iria displicentemente. Iria sorrindo. Até 2$500 eu dava pra conhecer o discurso do Teixeira Soares. Deve ser engraçadissimo. Quanto ao do Graça, creio que ele descobriu a mesma coisa que eu porquê não me lembro de ter falado pra êle ou prá mesa (3) sobre essa de que é "só sendo brasileiros que nos universalizaremos". Essa idéia é minha já faz tempo. Mais explicitamente já tenho dito isso em discussão epistolar com os mineiros e com os nortistas. Não sei si já disse pra você. Sei que o Inojosa (4) de Pernambuco publicou no Jornal do Comércio de lá uma carta minha em que eu falava sobre isso. Minha idéia exata é que é só sendo brasileiro isto é adquirindo uma personalidade racial e patriotica (sentido físico) brasileira que nos universalizaremos, pois que então concorreremos com um contingente novo, novo assemblage de caracteres psiquicos pro enriquecimento do universal humano. Isto aqui está dito meio complicadamente. Na tal carta está milhor. Vou mandar buscá-la.

Ciao, Manuel.

Estou gosando umas férias esplendidas. Me sinto forte e bom.
Mario

Mario de Andrade

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(1) Entenda-se que o "dolorosamente ridículo" são as brigas-de-comadres;
(2) Graça Aranha não mencionara o meu nome no famoso discurso da Academia;
(3) Mesa: refere-se a uma fotografia de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e Renato Almeida, sentados a uma mesa;
(4) Inojosa: Joaquim Inojosa, principal difusor do movimento modernista no Recife.
Obs: Mantivemos, na carta escrita por Mario de Andrade, em 1925, sua ortografia original.

Fonte: http://sites.uol.com.br/macunaim/Mario.htm
Enviado por: Ricardo Alfaya


 
 
 

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