Como estás enganada a meu respeito: pensas que eu sou igual a esses que, outrora, te fizeram a corte e que, hoje, se riem de ti. Não sejas injusta para comigo.
Faze-me a justiça de eu ser bem educado. Quando mesmo, por uma dessas horrorosas catástrofes, o nosso amor terminasse para sempre, crês que eu iria mostrar as tuas cartas, lançar as tuas flores à rua, rir-me, enfim, de ti? Não. Conservava do mesmo modo, com a mesma afeição, as provas que me dás do teu afecto; e embora do meu coração tivesse desaparecido o amor, dentro dele ficaria eternamente uma recordação, uma saudade. Fazia isto a ti, a mais ninguém. Fazia-to, porque sei que hoje me amas muito; apesar de ter a certeza (com que saudade o digo) de que amanhã hás-de dizer: o meu amor durou o que duram as rosas - l'espace d'un matin.
Realmente, sendo tu uma rosa... E creio isto porque tenho observado que possuis um espírito de ironia e sátira. Tenho a convicção íntima e profunda de que se eu, hoje, por um acaso te abandonasse a tua alma nada sofreria e tu ficarias impassível. Não terias aquela alucinação, aquela loucura, aquela mágoa concentrada que é a manifestação dos grandes apaixonados. Se isto não é verdade e eu me engano e se tu és sincera no que dizes, acredito que me ames hoje, e no futuro.
Mas o que acredito bem é que o teu amor é um reflexo do meu: o teu cabe dentro do cálice de uma flor; o meu -, é pequeno o oceano para o conter. Em linguagem mais simples: - o teu cabe dentro da tua mão; o meu só dentro das mãos de nós ambos... Deus me livraria de tal. Esquecer-me da Cândida? Esquecer-me dessa rapariguinha que é inteligentíssima, formosíssima, bondosíssima! Não a conheces? Vou apresentar-ta: a estrela da manhã, uma pérola do mar, um anjo do Senhor, o orvalho duma rosa, a hóstia dum altar, uma nuvem de incenso... Que porção de títulos! Títulos ainda mais grandiosos que os de todas as duquesas, de todas as princesas, de todas as rainhas, de todas as imperatrizes.
E como podes tu ser minha amiga, se és tão nobre e se és tão cândida? Como podes amar quem é apenas... nobre?
Aí vão os versos de que te falei. São os únicos que tenho feito a alguém. Se em outros tenho cantado o amor é porque parece mal não o cantar. Vê lá tu como os poetas são marotos. Andam a enganar o público, dizendo que amam, quando são indiferentes; que choram quando riem a bom rir.
Dantes eu era indiferente e ria; hoje, amo. E chorar? Chorar, ainda não, porque tu também não choras por mim; mas se um dia me mandares dizer que choraste, então que remédio tenho eu? Chorar, também, por ti...
Já pude um dia perceber que não gostas de versos, e com verdade te digo: - fazes bem. Hoje, o poeta quer tenha talento, quer não, faz um papel bem triste, porque ele só vive de ideais e o mundo só quer a realidade.
Dize-me: já encontraste alguém tão sincero como eu?
Juro que não...
Peço-te um obséquio: se me escreveres de Lisboa conta-me a história dos teus passados amores. Amaste, verdadeiramente, os outros que outrora te fizeram a corte? Foram tantos... tantos. Um rapaz que ordinariamente namora por se divertir, no decorrer da sua vida nunca tem tantos namoros como tu tiveste. E se a esses todos amaste é impossível que me possas amar. Num dia em que eu estava à porta do Colégio de S. Francisco um rapaz que lá se achava disse-me, afirmou-me, até, que tu estavas de tarde, à janela, para veres passar não sei quem... a quem sorrias. Delicadamente, faço-te a justiça de não acreditar...
São duas horas da noite. Vou interromper esta carta e continuá-la-ei, amanhã.
António Nobre
Fonte: Jornal de Letras Artes e Idéias, nº
14, Lisboa, Portugal, 01 de setembro de 198: "António Nobre, correspondência
inédita.
http://www.instituto-camoes.pt/arquivos/literatura/anobreinedita.htm
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A carta acima pertence às treze novas missivas (onze cartas, um bilhete e um cartão-de-visita), publicada pela Biblioteca Pública Municipal do Porto - organização, prefácio e notas de Mário Cláudio. Elas constituem o remanescente da correspondência amorosa com Cândida Ramos (Porto, 1868 - Porto, 1907), e abrangem o período que decorre entre 30 de Outubro de 1885 e 13 de Julho de 1886. Foram objecto de doação do irmão do poeta, professor Augusto Nobre, à Biblioteca Pública Municipal do Porto, em 30 de Outubro de 1934.