Cadernos da Bélgica: A missiva

Lamento dizer-lhe que não me dói estar longe de você. Doeu mas não dói mais. Estou a tiritar de frio mas nem me importo.

Aí vai uma foto da Grand Place, é bonita, não ?

Pois é, eu não queria ser rude mas tinha tanta vontade de dividir com você essa minha descoberta e essa felicidade nova, isto é, a de saber que posso viver sem você. Como fui besta e ingênua. Como você deve ter percebido, nem o endereço estou lhe mandando que é para ter certeza de que ficamos por aqui. Eu terei a última palavra.

Seis dias por semana eu corto cebolas, tomates, cenouras, champignons em um restaurante….Não, não pense ´Coitada, a que foi reduzida !` e tampouco pense ´Bem feito !` Em qualquer das hipóteses você estaria errado porque eu estou muito satisfeita aqui cortando legumes e lavando pratos. É verdade, creia-me e tenho talento. Eu tenho aprendido muito nesse restaurante. Ah !A delícia de enfiar uma faca bem afiada num tomate. E numa berinjela então!?  Agora, se a faca não estiver bem afiada não é a mesma coisa, é como torturar o legume...ou fruta, já que o tomate é uma fruta. Mas, num restaurante há sempre facas bem afiadas.
Às vezes termino o dia cansada mas satisfeita, com a sensação do dever cumprido. Até aqui eu não conhecia isso. Eu só conhecia os seus mimos inúteis e as suas alterações de humor. Confesso que o amava e esperava algo em troca. Algo além dos presentes, eu quero dizer. Foi um erro. Você não sairá nunca do seu conforto, dos jantares organizados por sua ilustríssima esposa que não está preocupada em saber com quem você passa as noites mas com o limite do cartão de crédito e com o novo piso do salão. Deve ter também os seus amantes, mas isso você não gosta de ouvir, não é ?Em todo caso, com muito esforço, eu tentava respeitar essa espécie de sociedade que era o seu casamento e raramente reclamava. Afinal tanta gente vive assim !  Ser a outra não era agradável mas adaptei-me à situação… O Choque, a gota d´água foi descobrir que eu não era a  ùnica ´outra` e se eu não era nem mesmo a ´outra`, eu não era mais nada, nada mais que um enfeite, uma peça da sua coleção. Não, não me interessa ser parte de um harém. Por isso, no dia em que descobri a sua faceta de sultão não atendi mais aos seus telefonemas, fechei o ´nosso` apartamento, vendi todos os móveis, juntei as jóias que você tinha me oferecido, vendi também e fui à agência de viagens.

A minha mãe contou que você esteve  na casa dela, mesmo sabendo que ela o detesta. Você queria saber o que aconteceu… O que aconteceu ? Aconteceu que eu me livrei dessa prisão que eram os seus braços. Lugar-comum ? Pouco importa, mas se lhe interessa saber se estou bem, saiba que estou. Algo mudou para sempre no dia em que percebi que você não era quem eu imaginava, que você não passava de um egoísta mas reagi rapidamente e tomei a melhor decisão, segui o adágio : ´Longe dos olhos, longe do coração.` A distância e o tempo foram bons remédios. Estou curada. Ou quase.

O que mais eu teria para dizer-lhe nessa última ocasião ? Não procure mais a minha mãe, não a incomode, nem sob tortura ela lhe dará informações, você já sabe disso. Ah, tenho saído com um cliente do restaurante e nos entendemos muito bem. Em todos os sentidos. Talvez você queira saber também como foi que eu descobri que eu não era a única ´outra´. Eu não contratei nenhum detetive, foi simples assim, a ´outra segunda` (vamos chamá-la assim porque não sei quantas há) bateu um dia à minha porta e explicou-me a situação. Eu a acalmei, disse que não tinha com que se preocupar, a partir daquele momento eu já estaria fora do páreo. Joguei o seu controle-remoto (tradução : o celular) fora e fui para a casa da minha mãe. Você vê, um sultão tem que ter uma capacidade muito grande de organização. Sugiro-lhe que contrate uma secretária para os serviços específicos ´Agenda de negócios extra-conjugais`. Mas tome o cuidado de não se envolver também com a secretária, seria um erro fatal.

Mais algumas palavras, por favor, não interprete o meu sarcasmo e a minha rudeza como algo positivo do estilo ´Ela ainda tem algum sentimento por mim, senão não me diria essas coisas`. Sim, tenho ainda algum sentimento mas ele não é nada bom e não será cultivado, será extirpado como um cancro.
Fique bem.

Leila Silva

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