Vigo, 13 abril 1896
Querido Pedro Freire, bom amigo. - Tua bela carta de 10 de fevereiro
foi a minha maior alegria destes últimos tempos. Senti vibrar nela
o teu largo coração de velho camarada generoso e leal, como
senti reviver o mais risonho período da minha vida. Agradeço-ta
do fundo d'alma, tanto quanto te agradeço o valiosíssimo
obséquio que ela me transmite. - É inestimável o socorro
que, com tanta amabilidade, me obtiveste do nosso Eduardo. Foi providencial.
Imagina que encontrei esta repartição consular sem um móvel,
mesmo dos mais indispensáveis ao serviço, nem um armário
para o arquivo, nem um cofre de ferro para guardar o produto dos emolumentos,
e que tenho pois de montar tudo à minha custa, e além da
casa tenho de pagar um indispensável auxiliar, sem o qual seria
impossível dar conta de todo o trabalho a fazer, que aliás
não é pouco. Com uma ajuda de custas calculada de um ordenado
de 4:000$.000 anuais é muito difícil transferir-se um cidadão
(mesmo regrado como eu) do sul do Brasil para o extremo norte de Espanha,
tendo de fechar lá uma vida com todos os seus velhos compromissos
e abrir aqui uma vida nova com todos os seus novos encargos; e mais difícil
ainda é ter de montar um consulado, que só possuía
o escudo com as armas nacionais e um mastro com a competente bandeira.
De sorte que, ao receber tua salvadora carta, desafogou-se-me o coração,
e pude, confiado nela, fazer logo algumas compras a crédito. Dizes
que aí o Tesouro já teve ordem para pôr os seis contos
à minha disposição, mas até agora ainda não
recebi ordem, nem participação de nenhuma casa bancária
desta praça. Não sei se te chegou às mãos um
telegrama em que te peço ordem ou aviso para o recebimento; o telegrama
foi dirigido ao "Secretário do Governo do Amazonas, Manaus". Escreve-me
alguma cousa a este respeito, porque receio que uma grande demora me acarrete
embaraços desagradáveis. Aguardava o recebimento para escrever-te,
agradecendo, mas sinto-me impaciente por dar-te sincera cópia da
minha justíssima gratidão - Vou reunir alguns jornais que
tratam de mim, para enviar-tos com esta. recomenda-me muito ao querido
Eduardo e dispõe do teu - Aluízio Azevedo.
Vigo, 2 maio 1896
Querido Pedro Freire - Salve! Já deves ter posse de uma carta
em que te peço expedição daquela providencial ordem
que me arranjaste. Até agora ela se não acusou aqui de nenhum
modo, e principio a lutar com embaraços. Faze-me o obséquio
de providenciar nesse sentido, que será para mim um dia de descanso
aquele em que eu receber os abençoados 6:000$000 de adiantamento.
Se até ao momento de receberes esta, não se tenha ainda resolvido
a remessa da ordem, corre a fazer com que a realizem, que o caso é
urgente e traz-me sobressaltado. Em todo caso não me deixes de escrever
duas palavras. Li e admirei a mensagem do nosso Eduardo, é uma valiosa
peça de administração. Leva-lhe os meus sinceros elogios
e recebe um abraço do teu velho camarada - Aluízio.
Vigo, 24 junho 1896
Meu bom e querido Pedro Freire - Ora, venha de lá esse abraço! Ainda há pouco, às 8 horas da manha, quando o correio me entregou a tua carta de 1.o do corrente e no sobrescrito dela reconheci tua letra, confirmada pelo dístico da tua secretaria, tive tão vivo prazer, que este dia, dia de S. João, de insípido e mau, como ameaçava ser, à semelhança dos anteriores, se me fez alegre e feliz. E esse prazer cresceu logo de intensidade ao ter posse do que dentro vinha escrito é que eu ansiava por essas tuas palavras animadoras com mais sobressalto que o namorado quando espera aflito a resposta definitiva do pai da moça com quem quer casar. Muito obrigado! Ah! que alívio, meu bom Pedro! Imagina que a minha situação aqui começava a melindrar-se perigosamente, porque. confiado, e com razão no teu socorro, endividei-me um pouco para montar casa e vai pingar justamente agora a data do pagamento. Pela que marcas para me chegar ao pelo o revigorante sopro áureo Amazonas, estarei sem dúvida salvo e desembaraea4o Sim, senhor respiro boje um pouco melhor! Meu desejo, acredita, era poder dar braços e lábios a todas estas garatujas que me estão saindo da pena, para que te cobrissem de beijos e abraços agradecidos. Mas é impossível que estas palavras escritas ainda sob a impressão imediata da alegria que me deu tua carta, não respirem alguma cousa da felicidade que me dilata o coração e me alegra o rosto. Sinto-me contente. Puseste-me a alma em dia de festa: abriste-me as infernizadas janelas deste velho castelo já meio desmantelado; acendeste-me os poeirentos lustres que há muito jaziam esquecidos e mortos, sinistramente dependurados do teto, como inúteis esqueletos de antigas alegrias já extintas; arrancaste-me os instrumentos dos estojos em que dormiam como cadáveres, levantaste a tampa do piano, e eis, meu Pedro, que os meus formosos e travessos demônios dos dias felizes, tão raros, aliás, sobem já do porão, onde cabeçeavam de tédio, e atiram-se aos saltos e aos guinchos, a rir e a cantar, cá acima para o sótão, onde hoje há festa e onde neste instante se preparam para dar um concerto em tua honra e em grata homenagem ao bem que me fizeste. - A minha louca de casa, essa doida e amada Fantasia, que tem a culpa de todas as tolices que tenho escrito até hoje; essa, pudesses vê-la tu! anda neste momento às braçadas com as flores para engrinaldar o castelo que reanimaste com a tua carta, e supõe, a tonta! que vai receber tua visita. E hoje é dia de S. João! e todo esse bulício festivo que vem das ruas até à mesa em que te escrevo, me parece um prolongamento dos preparos da minha festa. - Como e poderoso o efeito de uma boa notícia! - ainda ontem à noite e mesmo já hoje ao levantar-me da cama, irritavam-me as gaitas gregas e os cantos folgazões dos que passavam na rua. Não tive ânimo de sair ontem à noite, recolhi-me triste e com o coração encharcado de desconsolo e saudade, e eis que agora me alegram e fazem bem aos nervos esses mesmos bandos que continuam, pelas ruas, a passear o menino S. João entre cantigas populares e música de bombo, guitarra e gaita! Pois viva S. João, com mil bombas e outros tantos foguetes de estalo ou sem estalo; e viva tu, que para mim também foste um Batista, derramando-me na moleira ressequida a pinga reanimadora. - E agora, enquanto os meus demônios azuis folgam e se divertem, deixa que te diga que a tal Espanha salerosa de que falas só perdura na imaginação dos que sonharam com Byron e outros encantadores mentirosos. Queres saber o que isto é ~ é uma cousa que faz saudades do Brasil por tudo e todos os motivos. Se comparasse uma a uma as comarcas deste velho país com os tenros Estados do Brasil, a vantagem seria toda nossa. E particularmente de Vigo, dir-te-ei que isto é uma espécie de Maranhão, mas sem a índole hospitaleira de nossa terra, sem o oriental asseio dos nossos costumes entre ricos e pobres, sem aquela doce ingenuidade das famílias do norte do Brasil e aquela proverbial virtude das senhoras de toda idade e condição, e, principalmente, sem aquela vivacidade satírica dos maranhenses e aquela dominadora inteligência dos nossos patrícios, que por toda a parte se espalha e por toda a parte domina. Este povo, ao contrário do nosso, é porco, é estúpido e é velhaco. A estupidez e a brutalidade andam aqui aos coices polo ar e são respiradas por todos os poros. Bestializo-me aqui de um modo fantástico, meu amigo; sinto brotarem-me ferraduras por todo o corpo e ate na alma já me repontaram orelhas de burro. Felizmente tenho muito que fazer e o tempo que me sobrar do trabalho consular será absorvido pelas letras e pela pintura, pois ainda conservo o gosto por essa velha cachaça dos pincéis. - Termino pedindo-te ainda um obséquio: manda-me o teu retrato, que tenho aqui em casa, em uma das paredes do meu gabinete de trabalho, lugar reservado para ele, entre outros que amo. O meu aí vai por esta mesma via. - Teu Aluízio Azevedo.
Aluízio Azevedo
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(***) Em 1895, Aluízio Azevedo (Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo) encerrou sua carreira de romancista e ingressou na diplomacia. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª classe, sendo removido para Assunção. Depois foi para Buenos Aires, seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos (S. Luiz/MA, 14 de abril de 1857 - Buenos Aires/Argentina, 21 de janeiro de 1913). É o fundador da Cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras.