Barcelona, 3.12.949

Mui caro Manuel,

        Numa fase de pré-operação, operação e pós-operação da cabeça (que continua porque esta primeira não deu resultado e tenho de fazer duas mais), com tudo o que isso implica de medo, medo, medo, impediu-me de lhe agradecer antes o Literatura hispano-americana. Estou certo de que v. me desculpará.
        Teria eu muita coisa que contar. Tanta que não sei como comprimi-las nesta carta e nestes escassos minutos de que disponho. Fica para outra vez.
        Ando com muita preguiça e lentidão trabalhando num poema sobre o nosso Capibaribe. A coisa é lenta porque estou tentando cortar com ela muitas amarras com minha passada literatura gagá e torre-de-marfim. Penso botar como epígrafe aqueles seus dois versos:
        Capiberibe
        — Capibaribe?
        Conhece v. a obra de Jacques Prévert? Acabo de ler, emprestado por Miró, seu livro Paroles. Que poeta! Esse livro me fez notar uma coisa: como o gosto da poesia posterior à guerra se vai aproximando de certas maneiras da poesia brasileira. O fenômeno deve estar aproximado daquele outro que se nota em França: fome de novela norte-americana. Pois aqui na Espanha também, o poeta que mais interessa aos jovens não-catolizantes e não-fascisctas é Neruda. Creio que há em nós americanos uma ausência de retórica e um contato direto com a coisa que os europeus desconhecem. Prévert, neste sentido, é quase americano. (Evidentemente quando falo na ausência de retórica em nós, não penso nem em Schmidt, nem em Lêdo, nem em Jorge de Lima, nem em Emílio Moura, etc. Falo no "tenro cocô de cabrito", no "chorei no prato de carne", no "bebe nuvem como terra e urina mar", etc.).
        Um grande abraço. Vejo que consegui acabar pondo um pouco de conversa mole e fiada na carta. Um grande abraço de seu

        João Cabral.

João Cabral de Melo Neto

Do livro: Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, org. e notas de Flora Süssekind, Ed. Sette Letras/ Ed. UFMG, 1998

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