Salvador, 14 de fevereiro de 1990
Caríssima Sophie,
Escrevo-te para falar de minha estranheza ao ler tua entrevista à revista Bergs, na qual, sem nenhum resquício de educação, teces comentários desairosos sobre minha pessoa. Sinto que uma inveja desmedida te envolve por conta de tua separação. Sempre me julgaste culpada, mesmo sabendo que, quando Pierre e eu nos reencontramos após trinta anos, o casamento de vocês estava em franca decadência, e os jornais nunca pouparam comentários sobre isso. O que fizemos foi colocar nosso amor em dia e para isso foi necessário oficializar a separação. Dez anos passados, e nutres a mesma mágoa, atirando petardos para todos os lados. Faltou classe a tua entrevista. Nota-se opulência, esnobismo, mas classe, isso não!
Sempre admirei o teu talento e fui das mais ávidas leitoras de tuas obras. Ainda hoje releio os livros que escreveste na década de cinqüenta, considerados os mais fracos de tua profícua carreira. Considero-os excelentes. Não sou de dar importância a críticas, pois confio no meu entendimento em relação à arte da escrita. Já reli cinco vezes teu recente trabalho "O ósculo". Penso que, nessa obra, tenhas sido bastante influenciada pelo espírito de Samuel Beckett. Aliás, sempre sofreste influências no decorrer de tua vida literária. Certa vez lendo um livro teu que não recordo o título, jurava estar lendo Nabokov. É certo que nunca tiveste estilo próprio.
Observei que os anos têm sido cruéis com tua tão decantada beleza. Rugas profundas desenham teus lábios, e, ao redor de teus olhos, as sombras e vincos dão um ar cansado e antigo. Teus dentes desgastados pelo tempo, sequer lembram aquele sorriso que levava os homens à loucura, e às mulheres causavam doída inveja. Lembro-me como eras bela! Diziam que parecias Ava Gardner! Nessas horas, conformo-me por nunca ter sido sequer graciosa. As rugas hoje circundam minha face e são bem-vindas, não as receio. O corpo flácido, a pele sem viço, contam a história de minha vida. Enquanto isso, vagas de consultório em consultório tentando deter o tempo com bisturis mágicos.
Caríssima Sophie, sei que nunca consegui, no teatro, ser tão boa quanto tu na literatura. Jamais me compararei a ti em termos de talento. Gostei de interpretar Beatriz no espetáculo Dante no Paraíso, mas meu desempenho foi considerado sofrível. Quando fui premiada em Rei Lear, na década de sessenta, interpretando Goneril, senti que minha carreira estava em ascendência, mas parou ali. Nunca mais mereci um prêmio. Diziam que deveria ter sido cantora. Sei que minha voz era bela, cristalina, mas nunca quis ser cantora, pois minha alma sempre foi de atriz.
Consegui, no entanto, te suplantar em termos de vivência. Enclausuraste tua alma após a separação. Nunca mais tentaste ser feliz. Apenas o ato da escrita era sagrado em teu viver. Nunca mais abriste as portas do coração para o amor. Vi tua bela casa na entrevista de cinco páginas na revista. Emocionada, revi as oito fotos, e chorei ao ver teu lindo filho Emerson sorrindo, feliz, aos dezoito anos, pouco antes de partir, tão prematuramente. Decerto sofreste a dura perda. Único filho!
Não sei se és feliz vivendo assim, não aceitando o passar do tempo, o envelhecer. Eu e Pierre gostamos de ficar em nossa cadeira de balanço, tomamos nosso chá todas as tardes, ouvimos músicas clássicas, como antes, e nunca ficamos rememorando o passado, porque nosso presente é lindo e muito rico. É gostoso ter oitenta e dois anos!
Sinto que tenhas sido tão implacável comigo na entrevista. Pierre não liga, sempre foi um ser muito espiritualizado, acredita até em reencarnação, veja só! Eu não. Fico cheia de mágoas. Pensei em te mandar um buquê de rosas, mas depois vi que seria bem melhor recolher todos os espinhos delas e te mandar dentro de uma bela caixinha.
Aceite meus mais efusivos abraços.
Tua admiradora
Emilie
Gramado, 25 de fevereiro de 1990
Boníssima amiga Emilie,
Foi com crescente encantamento que sorvi tuas letras, a mim dirigidas, de forma tão delicada.
Peço-te que entendas minha posição na entrevista à revista Bergs. Houve grande pressão para que me pronunciasse acerca de meu divórcio, e teu nome foi insistentemente citado pelos entrevistadores. Não pude furtar-me a dizer que fui traída por uma amiga na qual confiava e que sempre dizia ser minha fiel admiradora.
Sempre soube do caso extraconjugal de Pierre contigo. Por anos a fio, tentaram ocultar, em vão. Simularam romances dele com outras, para que minhas certezas se fragmentassem, mas a mulher inteligente, sempre finge de forma que não percebam. Assim fiz eu. Fingi anos a fio, te recebendo em minha casa como se fosses uma grande amiga, dando-te os mais finos presentes, e oferecendo-te os mais amplos e belos aposentos quando ias em férias a nossa casa, em Florianópolis. Naqueles momentos, eu era a atriz!
Confesso que preferia ter mantido o casamento, mesmo deteriorado da forma que estava. As aparências teriam valido para uma vida social respeitável . No momento que houve a separação oficial, eu já madura, vi-me totalmente desprotegida e me enclausurei, confome bem frisas em tua missiva. A separação tornou meus dias vazios, e as noites gélidas, pois, mesmo sem nunca ter sido um amante ardoroso, Pierre conseguia me fazer sentir mulher plena, totalmente diferente dos outros que conheci após a separação. Homens medíocres, interesseiros e frios. Além de sua sensualidade razoável, Pierre sempre foi um amigo que me amparava nos momentos difíceis e seu senso de humor e espiritualidade me fascinavam. Como me fez falta a sua presença, após aquela abrupta partida no dia dezessete de outubro... Lembro que chovia, como se o mundo chorasse a nossa separação!
Não sinto raiva de ti, de forma alguma. Sei que estou no meu ocaso, e, de agora em diante, abrirei as portas para que a velhice entre. Não mais farei barreiras. Não procurarei bisturis mágicos. De que valem esses recursos se meu corpo cansado não condiz com uma aparência jovial? Ficarei como tu e Pierre, curtindo as alegrias de meus setenta e nove anos.
Sim, estou vincada, sequer sou sombra do que fui, e a comparação com Ava me envaideceu, mesmo a essa altura de minha vida. Como você, nunca me senti bela. Diria que uma mulher interessante, inteligente, não mais que isso. Essa deusa de beleza foi um mito criado pela imprensa.
Ainda sinto saudade de Emerson... Por quê aquele avião caiu? Ainda lembro do último sorriso dele para mim ao embarcar. Nunca mais pude ser a mesma pessoa. Minhas perdas foram tantas!
Querida Emilie, surpreendi-me com tua afirmativa de que nunca tive um estilo próprio, embora as críticas que tenho guardadas através desses longos anos, digam o contrário. Aceito todas as opiniões. Quanto ao Beckett, nunca fui sua fã. Nem de Nabokov. Talvez estejas tendo falhas de memória literária. Na nossa idade, isso é possível. Minha predileção sempre foi Virginia Wolf, e todos sabem disso.
Despeço-me pedindo desculpas se a ofendi na entrevista. Nada fiz, senão dizer a verdade, pois a revista, pelo seu alto padrão, por suas propostas arrojadas, merecia. Além de tudo, estava informando aos leitores sobre o meu próximo romance a ser lançado no mês de abril. O título é Catarse. Creio que seja o último de minha carreira.
Envio-te - junto à missiva - , uma linda orquídea, colhida por nós: eu e Pierre.
Tua amiga, sempre.
Sophie
Belvedere