11.12.951
Meu caro Manuel,
V. não tem o que me agradecer. O prazer que eu tive de encontrar a Dulce foi grande. Não só pela pessoa que ela é como pelas pessoas que ela conhece e de quem falamos muito. Não preciso dizer que nessas conversas v. ocupou a maior parte do tempo.
V. manda pra minha mãe o que v. escreveu sobre mau avô, Virgínio Marques. Ao tio Manoel de que v. fala nunca conheci. Nem sabia que ele tinha essa fama. Sabia sim de fama semelhante de um outro irmão de meu avô, Pedro Augusto Carneiro Leão, o mais moço da família e o único que até o fim da vida foi diretor de colégio (meu avô, como v. deve saber, vendeu o colégio e se dedicou à política e à Faculdade de Direito): esse Pedro Augusto era tremendo, dizem. Sabia Os lusíadas de cor e durante anos atormentou gerações de pernambucanos com a análise lógica do texto do poeta.
Se v. acha que está ficando velho por não compreender a arte abstrata creio que está enganado. Em primeiro lugar não há o que compreender. Acho que v. quer dizer "aceitar" em lugar de compreender. Pois quanto a "aceitação" devo dizer que estou com 31 anos e não a aceito. E que na Europa hoje, cada dia mais ela está sendo menos aceita. O que acontece é que no Brasil as coisas chegam com bastante atraso. E esse entusiasmo pela arte abstrata chegou atrasadíssimo.
Por que v. não toma a frente de um movimento contra essa arte abstrata? V. vai responder que está cansado e desinteressado. Acredito também que no Brasil não há clima político para isso pois a carta do maestro Camargo Guarnieri caiu dentro de um medo geral. Mas você com sua autoridade podia muito bem tomar a frente de um movimento de denúncia do abstracionismo em pintura, de seu equivalente atonalismo da música e do neoparnasianismo-esteticismo da Geração de 1945. Eu namorei essas coisas quando estive no Brasil. E quando vim para a Europa compreendi o que havia por debaixo de tudo isso e o trágico que é para nós brasileiros nos entregarmos a todos esses requintes intelectuais. Porque da Europa é que pude descobrir como o Brasil é pobre e miserável. Isto é: depois de ver o que é a miséria européia — enorme da Espanha, Portugal, dura na França, na Inglatera — acho que é preciso inventar outra palavra para a nossa, cem vezes mais forte.
Por tudo isso ser abstrato é trágico e ridículo para um brasileiro. E dizer isso claramente vale qualquer incômodo. V. com o seu prestígio devia iniciar essa campanha contra o cosmopolitismo de nossos intelectuais. Tenho a certeza de que o que nós temos de melhor: Gilberto Freire, Villa-Lobos, José Lins do Rego, Portinari, etc., seguirão o apelo. E deixaremos aos Otávio de Faria, Adonias Filho e outros profundos o seu charco particular, místico-integralista.
Hoje eu compreendo melhor como para qualquer artista brasileiro deixar de ser brasileiro para ser "universal" significa empobrecimento. Depois de alguns anos na Europa pude verificar o desinteresse que o europeu — i.e., o leitor universal — experimenta diante de nossos autores universais: Lúcio Cardoso, Cecília Meireles, Schmidt, etc. (estou dizendo isso em segredo). E ao mesmo tempo o entusiasmo que certos autores mais brasileiros (M. Bandeira, M. de Andrade, etc.), apesar de difíceis, despertam. Essa foi uma experiência que nos ajudou muito a compreender muitas coisas. E posso garantir que não era o gosto do exótico que determinava o interesse de que estou falando.
Se eu tivesse algum prestígio escreveria alguma coisa sobre tudo isso. Mas a um autor já firmado é que deve caber a iniciativa. E além de tudo há o trabalho aqui no consulado e há a distância do Brasil para atrapalhar. Pensei em tratar desses assuntos num prefácio a uma edição de meus livrinhos de poesia já publicados que, por iniciativa do Lêdo Ivo, vão ser reeditados num só volume por Orfeu. Mas desisti de prefácios. Podia parecer vontade de atrair a atenção sobre mim mesmo pela discussão e, com o Atlântico no meio, é impossível manter discussão. Por isso saem os livros sem mais explicações.
Bom, meu caro Manuel. Desculpe tanta conversa fiaca. Será que v. não manda nada para Londres? Conhece um poeta inglês chamado Wilfred Owen, morto na guerra de 1914-1918? Gostaria de lhe mandar a poesia dele, grande poesia. Que diferença da poesia conformista de Rpert Brooke.
Um grande abraço no Vinícius, quando o encontrar. E lembranças afetuosas à Dulce. E com tido isso um abraço afetuoso do seu
João Cabral
P.S. Quando o tenha terminado mandarei um poema que estou acabando a respeito da Espanha. Poema que não poderia publicar com o meu nome dada a atual amizade hispano-brasileira. Mas a greve de Barcelona me forçou a escrevê-lo e, formalmente, inspirado no "Bicho", procurei expressão direta e dura a respeito da qual gostaria de ouvi-lo.
Grande abraço
J.
João Cabral de Melo Neto
Do livro: "Correspondência de Cabral, com Bandeira e Drummond", org. apres. e notas de Flora Süssekind, Nova Fronteira/FCRB, RJ, 2001