S. Paulo, 25-III-35

  Portinari amico mio,

  já estava assustado com o seu silêncio. Mas tem-se que dar razão aos pintores, que pintam milhor os setes das belezas plásticas que os agás e jotas tão pouco plásticos da escritura. Aliás si já não lhe mandara um cartãozinho foi apenas porque não sabia a sua residência. Aqui tudo na mesma. Depois de amanhã dou uma reunião aos amigos e uns professores franceses, pra que venham ver o meu retrato que todos anseiam por ver. Lhe escreverei depois contando os gritos de entusiasmo do pessoal. Todos que aparecem por aqui se assombram com o retrato. Si eu pudesse e houvesse uma boa revista que publicasse tricomias, escrevinhava como o Manuel um ensaio sobre os Meus Dois Pintores, você e o Segall. Mostraria então o que foi pra mim uma revelação, um verdadeiro soco na barriga quando descobri: é que você me revelou o meu lado angélico, ao passo que o Segall me revelou o meu lado diabólico, as tendências más que procuro vencer. Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico, fico, não só perdido na beleze da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu.... sou bom. Seu quadro me dá confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico. Foi um bem enorme que você me fez, palavra. ¹

  O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu pelo menos me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez em quando no que estariam fazendo vocês aí os do grupinho. Vejo pela sua carta que a coisa não foi tão divertida assim e lastimo por vocês. Agora aqui está fazendo uma delícia de dias claros, mornos, sem chuva e noites quasi frias, gostosas da gente dormir. Vai chegar a grande época de S. paulo, abril, maio, com tardes que a gente chega a pensar que vai arrebentar de tanta gostosura. É o tempo aliás em que levo um pouco flauteadamente a vida porque não há meio, para um gozador que nem eu, de ficar encerrado dentro de casa, com um tempo assim lá fora. Viro passarinho, viro flor, não sei o que viro sei é que me esqueço de ser Mário, nestas tardes sublimes. Venha com Maria apreciar a coisa.

  No resto, continuo na minha vidinha, sempre com saudades de vocês dois e dos nossos momentos de convívio, infelizmente tão pequenos. Escrevi hoje pro Antônio Bento ² também, e agora vou trabalhar um bocado, dar conta das correções de provas dum livro que a Revista Acadêmica aí do Rio está publicando ³. E ciao. Um grande abraço pra você e outro pra Maria.  

                                                                                                                                                                               Mário


1- Os dois quadros, intitulados Retrato de Mário de Andrade, datam de 1927 (Segall) e 1935 (Portinari). Portinari começa a executar o retrato no final de 1934, quando realizava sua primeira exposição individual em São Paulo. O clima das sessões de pose é vivamente descrito por Mário de Andrade numa carta a Manuel Bandeira, à qual o poeta atribui erroneamente a data de 15 de novembro de 1935. A data correta é 15 de fevereiro de 1935, como comprova a alusão à morte de Ronald de Carvalho, ocorrida naquela data. Vide: M. de Andrade, Querida Henriqueta, Rio de Janeiro, 1990, p. 57; Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, 1967, pp. 439-440.

2- Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988): cronista musical, foi auxiliar de Mário de Andrade nas pesquisas folclóricas de 1929. Interessado também nas artes visuais, foi colaborador do Diário de Notícias (1930-1932), do Diário Carioca (1934-1965) e de Última Hora (1966-1970). Entre suas publicações destacam-se Manet no Brasil (1953), Ismael Nery (1973) e Portinari (1980).

3- O livro publicado pela R.A. Editora é O Aleijadinho e Álvares de Azevedo. É composto de dois ensaios — " O Aleijadinho e sua Posição Nacional" e "Amor e Medo" —, pois Mário de Andrade acaba por descartar a idéia inicial de abarcar também a música na figura de Carlos Gomes. Em carta a Murilo Miranda, editor da Revista Acadêmica, Mário de Andrade explica as razões que o levavam a rever o plano inicial do livro:

Eu falei em ajuntar no livro os três ensaios que fiz sobre o Aleijadinho, Álvares de Azevedo e Carlos Gomes. Ficava bonito e harmonioso. Mas acabei ontem de copiar o segundo desses trabalhos e desisti de botar o terceiro. Porque com as modificações, e mesmo sem elas, os trabalhos sobre Aleijadinho e o Álvares dão já um opúsculo muito alentado, talvez um livro aí de suas cem páginas, não sei calcular direito. Além disso tenho mesmo de escrever um livro sobre Carlos Gomes, pro centenário dele em 36, prefiro guardar o que já tenho de escrito sobre ele pra esse livro.

Vide: M. Andrade, Cartas a Murilo Miranda, Rio de Janeiro, 1981, p.12; Cartas a Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, 1967, p.426.

Do Livro: Mário de Andrade, Portinari amico mio: cartas de Mário de Andrade a Portinari / organização, introdução e notas de Annateresa Fabris. — Campinas, SP: Mercado de Letras — Autores Associados / Projeto Portinari, 1995. — (Coleção Arte: Ensaios e Documentos)

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