Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2005.
Caro amigo,
Os dias têm sido tão curtos, o tempo parece voar... Pergunto a mim mesma se ainda terei tempo para te rever. Tudo muda tão bruscamente, que confesso ficar incomodada em saber que daqui a alguns anos ficarei impedida de andar pelas ruas e viajar sozinha, devido à natural fragilidade. Afinal de contas, agora, aos oitenta e três anos já não sinto a leveza de outrora. Não é fácil a maratona de aeroportos e aviões, com a disposição dos velhos e loucos tempos! Nunca acreditaram que entre nós o que havia era simples amizade. Pensar que até hoje perdura tal preconceito... Em pleno século 21, ainda dizem que onde existe uma mulher e um homem juntos tem que, necessariamente, haver um quê de sensualidade. Ora, que atraso!
Amigo, ando tendo lapsos de memória, sim. Muitas vezes quero lembrar teu nome, como agora, e não consigo, embora rememore todos os nossos instantes; alegrias e dissabores...
Senti demais saber que nessa altura da vida, Henriqueta te abandonou, julgando-se apaixonada por um escritor que todos sabem, troca de mulher a cada ano para provar que aos oitenta, ainda é macho. Que seja! Henriqueta só não podia dar asas a essa impressão causada por um acesso de amor senil. Sei que não passarão seis meses juntos. Ela não suportará o vazio que vai se sobrepor a à excitação que tomou conta dela desde aquele chá beneficente, na véspera do Natal do ano passado, lembra? Ela se encantou quando Pablo Miguel, com aquele bigode caricatural, declamou seus melhores poemas. Cá pra nós, plagiou feio García Lorca! Quando chegou ao ponto culminante da apresentação, gritou: se minhas mãos pudessem desfolhar... aí não resisti e dei um grito! Todos me olharam e tive que dizer que estava com um nervo pinçado. É, o cara é canastrão mesmo. Incrível como consegue enganar.
Queria passsar o Natal contigo. Que tal em Barcelona, na casa de Maria Dolores? Desde que enviuvou, anda cabisbaixa, e nossa presença levará um pouco de alegria a ela. Pense sobre isso, e quem sabe, até lá já esteja com Henriqueta de volta? As paisagens de Madrid já me cansaram demais. Creio que será a minha última viagem, e talvez nunca mais nos vejamos. Uma Cerimônia de Adeus, pra ser realista, não fatalista.
Lembro-me agora, mencionando a viuvez de Maria Dolores, de teu carinho e constante presença quando tão precocemente Emílio foi levado para Deus. Não me conformava com o fato, e se não fosse por tua presença e a ajuda de Henriqueta, não teria sobrevivido. Peço que se comunique com ela, independente da situação por que passas. Creio que vai precisar ajudá-la num momento que não tardará a chegar, quando enfraquecida e sozinha, começar a procurar os teus olhos e as tuas mãos. Estejas atento. Meu caro amigo, aguardo tua resposta. Ainda me dou por feliz e realizada por escrever com facilidade nessa máquina, que a maioria das pessoas de nossa idade vêem como coisa sobrenatural.
O Brasil vive dias extremamente difíceis. Não tenho a mínima idéia de onde tudo isso irá parar. Confesso-te que foi uma grande decepção para mim. Já não quero ler jornais nem assistir a à televisão, porque preciso de alegrias, não de tristezas. Não permito que me falem sobre CPIs! E como se não bastasse, aquela tragédia em New Orleans, um dos locais mais aprazíveis que já tive oportunidade de visitar... Não consigo acompanhar os noticiários também. Preciso deletar de minha mente essas ocorrências. Confundem-me, entristecem-me, não tenho estrutura emocional para mais infortúnios.
Se necessário, ficarei alienada, me entregando aos devaneios de meus filmes prediletos. Fred Astaire em Cantando na chuva, Ingrid Bergman e Humphrey Bogart em Casablanca, Rita Hayworth em Gilda, Ava Gardner em A condessa descalça, entre muitos que tenho arquivados. Ando também relendo meus autores prediletos. Saio às tardes com minhas amigas para lanchar, jogar dama, xadrez, e é um bálsamo para minha vida.
Envio-te as fotos que tirei em Lisboa, quando, no ano passado, fui conhecer meus lindos bisnetos gêmeos. Vivi momentos deliciosos! Pude constatar como a família faz jus à fama da beleza!
Como te amo, meu amigo! Sempre estiveste ao meu lado, embora fisicamente distante, podia sentir-te em espírito. Lembrei teu nome! Raul! Graças a Deus!
Receba todo meu carinho e admiração.
Ana Aurora
São José dos Campos, 5 de setembro de 2005
Querida Ana Aurora ,
Que alegria te rever, mesmo através de fotos. Não demonstras fragilidade, de forma alguma.
Os lapsos de memória são comuns em nossa idade, querida amiga. Ainda não os tenho, mas não posso garantir que nunca os terei. Henriqueta está aqui, amiga. Nunca me abandonou. Nosso casamento tem sido forte como rocha. Superamos adversidades, mas nunca nos separamos sequer por um dia ao longo desses sessenta e um anos.
Há cerca de dois meses, recebemos a visita de Maria Dolores e Pablo Miguel. Estavam radiantes. Foi das mais acertadas a decisão de casar-se com ele no ano passado, colocando um fim aos anos tristes de sua viuvez. Ainda mora em Barcelona, porém sempre está aqui no Brasil visitando os filhos, netos e bisnetos. Pablo continua um exímio escritor, com estilo próprio, inteligente, um cavalheiro. Mantém o hábito de render homenagens ao seu poeta preferido, García Lorca, sempre que se apresenta em público. Agora que mora em Barcelona, as coisas se modificaram. Só declama em espanhol, como sempre gostou, mas nem sempre podia ser compreendido. Como é interessante a vida. Quem diria que um dia Pablo se renderia aos encantos de uma mulher, de forma definitiva? Sempre gostou de ser livre, nunca teve um relacionamento sério, tinha dezenas de mulheres, e hoje aos setenta e oito anos, cativado por Dolores, como está feliz! Rejuvenesceu uns dez anos.
Poderemos passar o Natal em Barcelona se realmente quiseres. Henriqueta gostou da idéia e sei que tanto Maria Dolores quanto Pablo Miguel ficarão encantados. Temos no entanto que providenciar as passagens, não podemos deixar para última hora.
Tenho acompanhado de forma pacífica, sem me estressar, as ocorrências políticas no Brasil, pois é difícil me abstrair de tudo isso. Parece uma avalanche. Porém fazes bem te isolando de más notícias, querida. Continua assistindo aos teus filmes, fazendo teus lanches à tarde com as amigas. Em nossa idade temos é que colher alegrias, e não absorver dissabores.
Tenho também assistido a muitos filmes. Lembro que sempre vias e revias o filme Cantando na Chuva, e te extasiavas ao ver Gene Kelly (não Fred Astaire) na cena antológica, quando ele cantava e dançava na chuva. Realmente é um dos momentos mais lindos que a cinematografia já nos proporcionou. Lembras que o filme recebeu duas indicações ao Oscar?
Sempre estaremos ao teu lado, querida amiga. Moramos muito próximos, não existe essa distância que ultimamente tens colocado nas cartas. Puxa pela memória e te lembrarás que no carnaval estivemos juntos em Poços de Caldas. Pega o álbum de fotografias que lembrarás os bons momentos que passamos. Continuas namorando Ronaldo? Pareciam tão felizes juntos, que eu e Henriqueta chegamos a prever o matrimônio. Conta-nos como vai o relacionamento. Não mencionastes mais nada desde que nos falamos na Semana Santa. Queremos crer que ainda estejam juntos e felizes.
A propósito, pretendes ir com ele a Barcelona? Seria ótimo.
Gostaríamos de tê-la por alguns dias conosco. O que pensas da idéia? Aguardo tuas noticias. Escreve pondo-nos a par de teus projetos, ou telefona se achares melhor. Temos grande dificuldade para falar contigo, pois teu telefone sempre está ligado à secretária eletrônica, e ouvimos apenas tua mensagem gravada. Sabemos que recados pela secretária nem sempre são bem entendidos, por isso os evitamos.
Querida amiga, receba um afetuoso abraço de
Raul e Henriqueta
Belvedere