CARTA DE PABLO NERUDA A SUA EXCIA. DOM CARLOS IBAÑEZ DEL CAMPO (***)
Na qualidade de presidente da Sociedade de Escritores do Chile e em defesa dos interesses e direitos dos criadores e continuadores da cultura chilena, tive a maior satisfação de acomapnhar a Diretoria da Sociedade dos Escritores do Chile para expor a Sua Eccia. alguns dos nossos problemas associativos. Tive antecipadamente a certeza de encontrar acolhida às iniciativas que dignifiquem praticamente a vida dos escritores na pátria de Gabriela Mistral.
Deixei, porém, de tratar, diante do senhor Presidente da República, de um problema político e pessoal que me preocupou gravemente antes de conversar com autoridade de tanta importância e responsabilidade. Tive o cuidado de não tratar desta matéria política a fim de separá-la cuidadosamente de minha atividade como presidente da Sociedade de Escritores do Chile, agrupamento exclusivamente cultural.
Sucede, senhor Presidente, que não me considero nem sou praticamente um cidadão da Repúglica do Chile e, por conseguinte, não deveria ter mantido entrevista alguma nem com Sua Excelência nem com outras autoridades. Devo ser considerado como um homem invisível. Estou riscado das listas eleitorais. Tenho, portanto, sérias dúvidas sobre a minha existência civil. Se não se me reconhece o direito que têm em meu país até os vis delinquentes, sem falar dos mais hábeis exploradores, como posso apresentar-me perante os governantes? E podem estes governantes considerar as petições de um homem a que se nega o exercício da cidadania, considerado e consagrado mesmo nas nações mais atrasadas?
Senhor Presidente, tenho sido honrado em todos os países em que tenho estado, e não quero recordar estas honras, se não as acreditasse diretamente outorgadas ao meu povo e à minha pátria. Quando Maria Casares e Jean-Louis Barrault recitaram com emoção meus versos na Sorbonne da França, ou quando as Municipalidades de Veneza, de Turim, de Gênova, de Nápoles e de Florença me recebiam em plenário, pensei com orgulho que através deles seriam conhecidas a história, as lutas, o pensamento e a beleza de nossa pátria.
Mazs isto tudo, senhor Presidente, não me serviu sequer para ter direito a voto no Chile. E uma delegação de homens que representam em nosso país o atraso colonial e a iníqua cobiça se atreveu a se apresentar perante Sua Excelência para pedir-lhe que eu e alguns milhares de cidadãos continuemos no Limbo, na escuridão por eles propiciada, nas trevas medievais que eles desejam para todos os chilenos. Estes antigos usurpadores decidiram que não participaremos nas próximas eleições, e pretendem subjugar o Governo da República para recuperarem e prolongarem de algum modo seu reinado de ignorância e miséria.
Naturalmente, senhor Presidente, eu não desejo estar em situação privilegiada e não aceitarei uma reabilitação pessoal de meus direitos à cidadania. Não é este o tema de minha carta nem o objetivo de minhas intenções.
Atrevo-me a pedir a Sua Excelência que se nos devolvam a todos os chilenos que fomos inconstitucionalmente riscados dos Registros Eleitorais nossos direitos de cidadãos e de chilenos. Fomos separados deste aspecto da vida da pátria por um mandatário ao qual contribuímos grnademente para ser eleito e que traiu todos os seus princípios, causando o maior agravo à liberdade e à dignidade do Chile em toda a sua história.
Corresponde-me pedir a um Presidente, para cuja eleição não contribuí, que retifique esses monstruosos erros. De tal forma é intrincado o processo da História. Mas, apesar disso, não pode haver nada mais monstruoso do que esta odiosa discriminação na cidadania exercida neste caso para os chilenos, dividi-los e em seguida explorar a nação inteira.
Tampouco pode haver nada mais reconfortante para a continuidade da democracia e da liberdade de nosso país do que a ação imediata, hoje em suas mãos, para que se restaurem os direitos inalienáveis de milhares de patriotas, entre os quais tenho a honra e o orgulho de me contar.
Reitera seus cordiais cumprimentos ao senhor Presidente da República,
Pablo Neruda
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(***) Carta enviada em 1958
Do livro: "Para nascer nasci", Difel, 3ª ed., 1980, SP