Companheiros,
o escritor Ernani Ssó teve um de seus livros retirado de circulação acusado de incitar à violência. Detalhe: trata-se de um livro infantil de grande sucesso. A seguir, a carta que ele escreveu à editora debatendo o assunto. A divulgação da mesma foi e é autorizada pelo autor.
Sérgio Fantini
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Porto Alegre, 22 de setembro, 2007.
Cara Ir. Jurema,
A Ir. Maria Alexandre me enviou sua carta. Eu a li com tristeza, mas nada surpreso.
Não espero que as pessoas gostem de tudo o que escrevo. Dada a grande variedade de temperamentos, seria no mínimo ingênuo esperar a unanimidade. Mas uma coisa eu espero: ser compreendido. Sei que isso também é muito difícil, mas prefiro apostar as minhas fichas na razão, na inteligência e no bom senso. Se não fosse assim seria melhor voltarmos para as cavernas, não é mesmo?
A minha falta de surpresa se deve ao clima de guerra civil em que o Brasil vive há décadas. Sob pressão, as pessoas reagem impulsivamente, às vezes esquecendo de raciocinar sobre coisas bastante simples. Basta pensarmos que a maior parte da população espera resolver o problema da violência com mais armas. Ou que a reforma do mundo deve começar com a eliminação física de todos os nossos inimigos, que são, claro, os que pensam diferente de nós.
Muitos autores criticados reagem agressivamente. Mas eu não. Eu gosto de discutir. Acho que uma boa discussão pode não levar à verdade, mas costuma pôr um pouco de cor num mundo visto em preto e branco.
Agora, neste caso, não fui criticado. Fui censurado. Acusaram O Espelho da Bruxa de incentivar a violência entre as crianças sem apresentar uma prova, ou um argumento, por mais tênue que fosse. E baseada nessa acusação, a Secretaria de Educação retirou meu livro das escolas. Isso é grave, me parece. Por isso devemos pensar com toda a calma.
Mas, antes de falarmos de literatura, vamos falar de sonhos.
Há uma velha pesquisa que sempre gosto de lembrar. Cientistas pegaram um grupo de pessoas e as impediram de sonhar. Sabe-se que a pessoa começa a sonhar porque suas pálpebras tremem. Então as pessoas eram acordadas. O que aconteceu? Depois de umas sessenta horas sem sonhar, as pessoas passaram a ter alucinações.
É isso. Se não sonharmos, começamos a enlouquecer. Censurar nossos sonhos é muito, mas muito perigoso.
Agora eu pergunto: a gente só tem sonhos bonzinhos? A gente só sonha que ama o irmão, o pai, a mãe? A gente sonha que vive numa espécie de piquenique feliz numa eterna primavera? Pelo contrário, a gente tem sonhos macabros — e se não os tivermos, podemos endoidar e fazer acordado o que sonhamos dormindo.
A literatura é prima-irmã do sonho.
Para que serve a literatura? É evidente que as pessoas têm uma necessidade vital de histórias. Desde os tempos mais remotos, sabemos que se contavam e se ouviam histórias. Por que isso? Porque todos nós não suportamos a realidade vinte e quatro horas por dia. A realidade é muito complicada, muito dolorosa. Precisamos sonhar acordados, precisamos não ser nós mesmos por alguns instantes. Isso é uma fuga, claro, mas ao mesmo tempo não, porque nesse sonho acordado podemos aprender a nos conhecer melhor e aprender sobre o mundo, a driblar suas armadilhas .
A literatura, como o brinquedo, instala a realidade num modelo mais funcional. Na literatura, como no brinquedo, a criança pode experimentar o mundo sem correr riscos: pode ser o mocinho e o bandido, o príncipe e o ogro, a princesa e a bruxa, enfim, o que quiser, sem o peso da realidade física. É assim que uma criança elabora seus problemas, suas angústias, suas deficiências, como nos informa a psicologia há mais de um século, ou os artistas em geral, que intuíram isso há mais de cinco séculos. Note-se mais uma vez: a literatura e o brinquedo não são diretos — é uma história, é uma brincadeira: não é a verdade. Mata-se e se morre de mentirinha. Porque é de mentirinha, a criança consegue encarar o que mais teme — o que mais teme no mundo e principalmente em si mesma.
Uma anedota. Em 2006, a Escola Walneri Antunes, aqui de Porto Alegre, adotou minha coleção No Escuro, inclusive o volume O Espelho da Bruxa. Entre as muitas coisas feitas, uma delas foi uma casa da bruxa, com tudo o que as crianças achavam que devia haver numa casa de bruxa. Um menino tinha medo de ir à casa da bruxa. Mesmo acompanhado pelas outras crianças ou pela professora. Aí ele descobriu o caminho das pedras: se fantasiar de Batman. Com o uniforme de herói, não era ele quem ia, mas o Batman, um sujeito muito valente e poderoso.
A literatura e o brinquedo nos dão a chance de sermos o Batman. Mais importante: nos dão a chance de chegarmos a ser nós mesmos através do Batman.
Compreendo perfeitamente a inquietação de pais e professoras com histórias como O Espelho da Bruxa, principalmente com cenas como aquelas em que o Beto, transformado em monstro pelos espelhos da bruxa, agride seu irmão monstro e pais monstros. Esses pais e professoras não gostam de pensar que seus filhos e alunos sentem raiva, que há momentos em que desejam bater nos irmãos e nos pais ou nas professoras. Esses pais e professoras gostariam que as crianças fossem os Ursinhos Carinhosos, sempre, dia e noite, para todo o sempre. Eu também gostaria que fosse assim. Mas isso é absurdamente irreal.
Então fazemos o quê? Ignoramos que as crianças têm impulsos agressivos e não escrevemos sobre isso? Viramos as costas para a realidade e damos histórias como os famosos Ursinhos Carinhosos em que não há conflito nunca, em que tudo começa bem e acaba melhor ainda? Essas histórias em que tudo é "positivo", sinto dizer, são mentirosas — e toda mentira é danosa, variando apenas o grau do dano. Veja, se se dá a uma criança apenas os Ursinhos Carinhosos, qual a mensagem? Todos são santos, menos você. Porque a criança sabe o que sente e o que ela sente está a léguas dos sentimentos dos Ursinhos Carinhosos. Isso vai aumentar seu sentimento de culpa, de isolamento, no pior dos casos. No melhor, ela vai achar a história muito chata, com toda a razão, aliás. Ou não achamos chatos os livros, os filmes, as peças que não nos dizem nada?
Essas histórias que não discutem os conflitos e os problemas verdadeiros pensam estar protegendo a criança desses mesmos conflitos e problemas, talvez porque achem que conflitos e problemas são coisas de adultos apenas. Isso é absurdo, totalmente absurdo. Não é preciso ser psicanalista pra saber disso. Basta conversar cinco minutos com qualquer criança.
A criança só será protegida se for ajudada a encarar esses conflitos e problemas . Fugir nunca resolveu nada. E uma das formas mais eficazes de ajudar é contando histórias em que esses conflitos e problemas aparecem, não de forma direta, mas como fantasias. Assim a criança não se sente invadida, exposta. Assim a criança pode relaxar. É aquilo que falávamos antes: não é o menino, mas o Batman, que vai à casa da bruxa.
Vejamos a cena que preocupou as professoras. É o Beto real que entra no quarto dos pais e os espanca? Não, é um Beto transformado em monstro pela bruxa através de seus espelhos. São os pais verdadeiros que são espancados? Não, são pais monstros, com escamas e tudo, produtos também do encantamento da bruxa. Esses personagens são fantasias, seres que vivem dentro de um espelho que está dentro de outro espelho. Os adultos até podem esquecer isso, mas uma criança? Vi um menino, matando alegremente um monstro num jogo no computador para espanto da sua mãe. Ele disse: "Mãe, é só um jogo, esse monstro é um desenho, não é uma pessoa".
Mas o que acontece com o Beto, depois de enfrentar inúmeros perigos dentro do espelho, de vencer a bruxa de vidro? Sai do espelho, quer dizer, sai da fantasia, volta à realidade. E aí se depara com o quê? Com os pais de verdade, pais que não são mais monstros. E então ele pode voltar para seu quarto e ficar tranqüilo, ficar alegre.
Onde está o incentivo à violência? Seria incentivo à violência se no final Beto espancasse os pais verdadeiros sem razão nenhuma.
Sei que estou me repetindo, mas acho bom deixar isso bem claro. Como estamos lidando com um sentimento ameaçador — terrível porque verdadeiro —, precisamos da fantasia, das máscaras de bruxa, de monstro, de andróide, para não assustar a criança. Sem a fantasia seria intolerável, porque seria verdade. Como estamos numa espécie de brincadeira, ela pode projetar seus sentimentos terríveis nessas figuras, examiná-los, vivê-los e, por fim, vencê-los, sem entrar em curto-circuito.
Como se pode ver, essa história usa as mesmas estratégias literárias dos contos de fadas. Na verdade, é um conto de fadas moderno.
Agora, seria interessante perguntar: ainda há dúvidas sobre o benefício dos contos de fadas para crianças? Lembra da frase de Einstein? " Se querem que as vossas crianças sejam inteligentes, leiam-lhes contos de fadas. Se querem que elas sejam mais inteligentes, leiam-lhes mais contos de fadas." Bruno Bettelheim escreveu A Psicanálise dos Contos de Fadas em 1976, demonstrando a importância dessas histórias. Temos exemplos mais recentes aqui mesmo no Rio Grande do Sul. O poeta, escritor infantil e psiquiatra Celso Gutfreind fez uma pesquisa, na França, sobre contos de fadas, em que tratou de crianças abandonadas contando histórias para elas. Sua experiência está relatada no livro O Lobo e o Terapeuta . Temos também Fadas no Divã, dos psicanalistas Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso, uma extraordinária análise não só dos contos de fadas como de histórias e filmes modernos. Todos concordam em que os elementos assustadores dos contos assustam muito mais a pais mal informados do que a crianças e que são assustadores em termos, porque são através deles que as crianças conseguem elaborar seus conflitos, não através de sermões para que sejam boazinhas, ou através das mentiras piedosas que garantem que "não precisa ter medo porque bruxa não existe". Claro que bruxas não existem, mas o medo da criança existe e vai continuar existindo , e é dele que estamos tratando nas histórias, não de bruxas ou qualquer outro monstro. Contar uma boa história para uma criança é melhor que deixar a luz acesa na hora de dormir.
Ninguém nunca se tornou caçador porque ouviu em pequeno a história da Chapeuzinho Vermelho. Ninguém se tornou inquisidor porque ouviu João e Maria. Ninguém matou a madrasta porque ouviu Branca de Neve.
Isso acontece com as brincadeiras também. Uma das brincadeiras mais populares no meu tempo de infância era polícia e ladrão. Quase todos nós preferíamos ser o ladrão, certamente para nos sentirmos transgressores. Agora, essa brincadeira levou algum de nós a assaltar um banco ou a desviar dinheiro público?
Comentando isso com Mário Goulart, escritor infanto-juvenil que ganhou o Prêmio Jabuti Revelação de 1999, ele me escreveu: "Quem fala aqui é alguém que já matou centenas, talvez milhares de bandidos e índios nos tempos idos do faroeste. E eu era bem pequeno, vê só, com a dureza da alma e dos dedos indicador e médio apontados como revólver. Mesmo assim, tornei-me este pacato molenga, incapaz de dar um tiro até mesmo num corrupto. Isso de verdade, é claro. Na imaginação não poupo um, e ainda sopro os dedos fumegantes".
Lembre-se: os meninos que não brincaram de guerra se tornam os adultos mais inclinados a fazê-la.
Se formos banir das bibliotecas escolares todos os livros com cenas de violência, temos de começar com a Bíblia, não é mesmo?
É preciso fazer uma diferenciação. Há violência e violência. A violência não pode ser gratuita numa história. Ela deve ter razões de ser, ser parte integrante do enredo, dos personagens. Enfim, ela tem de ser lógica dentro da história, de fazer sentido nela. Será gratuita quando isso não acontecer. Um bom exemplo são os desenhos de Tom & Jerry, ou os do Pica-pau, em que há violência pela violência, onde os atos não têm conseqüências. Isso sim é mau. Mas mau como obra de arte. Como influenciador moral esses desenhos são nulos.
Agora, incentivo à violência na literatura? Fora histórias que defendem a resolução de diferenças na base da porrada e histórias que dizem que é bom matar judeus, ou negros, ou índios, ou asiáticos, ou homossexuais, eu não conheço. Mas conheço muitos outros modos de incentivo à violência, ou que são a própria violência.
? Pais que espancam ou abusam dos filhos. Segundo dados médicos e policiais, crianças vítimas de abuso têm todas as chances de se tornarem adultos assassinos, estupradores, etc.
? Pais que batem nas mulheres. Aprende-se o que se vive.
? Pais que desrespeitam as leis do trânsito com seus filhos no carro.
? A impunidade de criminosos ricos e políticos.
? Pais votando nesses políticos corruptos, quer dizer, aplaudindo a impunidade.
? As campanhas publicitárias na televisão, que incentivam crianças e adultos a serem felizes adquirindo quinquilharias de que não necessitam, ou a se acharem melhores que os outros porque usam determinado produto, ou a levarem vantagem em tudo, ou a se encherem de álcool ou fumaça de cigarro pra ser charmoso, etc.
? Pais que ensinam os filhos gremistas a resolverem seus problemas no pau com os colorados, ou vice-versa.
? Fundamentalistas religiosos de toda plumagem.
? Fundamentalistas políticos também de toda plumagem.
? Censores.
Seria possível continuar a lista, mas acho que já deu para entender sobre o que falo.
Mas, antes de terminar, gostaria de dizer que estou à disposição da editora e da Secretaria de Educação de Canoas, ou qualquer outra, para falar com as professoras sobre literatura infantil, ou literatura em geral, e tentar esclarecer as dúvidas que tenham.
Sem mais, um abraço do
Ernani Ssó
Trecho de carta de Paulo Hecker Filho, o maior crítico literário gaúcho, datada de 29 de julho se 1996, sobre o conto O Espelho da Bruxa:
(…)
O conto, penetrante. Cria com verossimilhança, probabilidade, rigor de redação um pesadelo infantil. Winicott, que é taco em psicologia da criança, na linha de Melanie Klein, diria mais, pondo ordem nos insights kleinianos, mostra que o clima mental da criança é antes de tudo o medo. Tudo é desafio que assusta e a criança vence ou morre de medo, se traumatiza. No caso, Beto vence a Bruxa e pode dormir.
Está certo ainda que não tenha de contar. Sentir essa necessidade mostraria um resto de insegurança em ter vencido a Bruxa; iria buscar o testemunho alheio para ter certeza. Dispensa-o por se ver livre, vitorioso sobre o medo, ele mesmo enfim.
Embora usual, ficou novamente bem contar um sonho como realidade. Mas o bom mesmo é a compreensão no conto do terror que atinge a criança. Se em geral na vida menor que no conto, ainda terror.
Ernani Ssó
Enviado por Sérgio Fantini