Senhor general:
É bem provável que
o senhor nem chegue a ler esta carta, pois não sou chileno, o que
nos tornaria mais próximos, e muito menos seu seguidor político,
o que nos afasta definitivamente. Ao não lê-la, o senhor estará
se poupando de um confronto com algumas verdades, como alguém que
pense não envelhecer se fugir do espelho.
Neste momento, o senhor está
retido em Londres, à disposição das autoridades
inglesas, que decidem se vai responder por crimes contra a vida humana,
como quer a justiça da Espanha e a da Suíça, além
de outros países que já se manifestaram interessados em levá-lo
às barras dos tribunais.
Aliás, que o senhor possa
ser extraditado e julgado já não há mais controvérsia.
Assim decidiu a Câmara dos Lordes, embora restringindo o alcance
da justiça para um lapso de apenas dois anos, o que o livra de responder
pela maioria das atrocidades cometidas durante o longo período em
que suas botas sufocaram o bravo povo do Chile.
Dentre esses crimes contra a vida,
alguns chamam atenção pela barbárie, poucas vezes
conhecida na história do homem. Registram-se casos de execução
sumária de cidadãos, chilenos ou não, que se atreveram
a pensar que a Mãe Natureza os fez livres e que a liberdade era
algo inalienável e inapropriável por quem quer que fosse.
O senhor e seus gorilas, esquecendo o ensinamento de Danton (“A baioneta
serve para quase tudo, menos para se sentar em cima dela”), pensaram erroneamente
que a repressão consegue calar a razão e os corações,
mas ela só silencia as bocas, sufoca as exterioridades, mata os
corpos...
Lá, nas valas comuns dos
cemitérios clandestinos, onde seu pessoal escondeu os corpos dos
que ousaram discordar da truculência, centenas de cadáveres,
aparentemente inertes, urdem e tramam contra a sua velhice. Este exército
de vítimas silenciadas não quer que o senhor morra sem que,
antes, apodreça. E que essa deterioração venha, não
com arrependimento, que é um recurso à disposição
das consciências que erraram de boa fé, mas com remorso, que
é a corrosão moral dos celerados. Não quer que a humanidade
olvide ou desconheça a extensão dos seus crimes macabros,
quando mandava aprisionar mulheres grávidas, sem nenhuma culpa formada
ou mesmo presumida, apenas para que, nascendo-lhes os rebentos, fossem
estes entregues à adoção a militares de alto coturno,
cuja cumplicidade e cega obediência eram assim premiadas. Muitas
dessas desditosas mães, após o parto, sumiram misteriosamente...
Há também outros
contingentes a clamar por justiça. Um desses segmentos é
composto de mortos-vivos, pessoas que se arrastam conduzindo corpo e
espírito torturados, que bem preferiam ter morrido sob a vergasta
da sua horda assassina a continuar com as chagas abertas pela vida em fora.
Há os que o senhor mandou assassinar longe da própria pátria,
como foi o caso de Letellier, vítima de um brutal atentado a bomba
nos Estados Unidos, perpetrado – já não há dúvida
– pelos agentes de sua finada DINA...
Mas um homem é especial,
dentre todas as suas vítimas, que são contadas aos milhares:
Salvador Allende. Presidente democrático, eleito pelo voto popular,
sonhava com um Chile maduro a caminho do socialismo. Não de um socialismo
imposto pela força das armas, prepotentemente, mas construído
a cada dia, com consciência cívica e com liberdade. Na concepção
de Allende, havia espaço para que o povo, soberanamente, optasse
pelo socialismo sem ultrajar ou desmerecer a democracia. Um sonho? É
bem provável que tenha sido. Mas ai daquele que sepulta o sonho
de um povo. Ao destituir Allende, gesto que redundou em que ele também
abdicasse da vida, o senhor traiu num só tempo a nação,
cuja constituição foi ultrajada pelo golpe, e o próprio
presidente, que cometeu a imprudência de confiar num general que
tinha obsessão pelo poder, não importando a maneira de tomá-lo.
Foi, sem dúvida, o maior erro daquele homem público. Tivesse
ele, a exemplo de Cícero, varrido do Chile o seu Catilina, não
teríamos hoje tanto sangue derramado em vão e tantas feridas
a cicatrizar.
Já notou, general, que
o seu nome está sempre atrelado à morte e à covardia
dos facínoras, que sobrevivem pela tortura, prepotência, atentados
e bandidagem travestida de ações de governo? Não espanta
que haja um acumulado de maus presságios sobre a sua cabeça,
porque a natureza, mais dia menos dia, elimina quem ouse atentar contra
a vida.
Foi ridículo – e garanto
que suas vítimas deram gargalhadas embaixo da terra! – ver o senhor,
o general petulante e amedrontador de ontem, alegando razões humanitárias
para que a Inglaterra o soltasse. Há vários canalhas na face
da terra, mas um pedido de clemência por razões humanitárias
não podia estar em boca mais errada. O senhor é uma besta,
general, no sentido mais hediondo da palavra. Não é um homem,
convença-se disso.
O argumento que sua defensoria
levanta agora, baldados os esforços de mostrar senilidade digna
de compaixão, é defender a tese de que um país não
tem competência legal para julgar um ex-governante de outro país.
Sou obrigado confessar que a tese me sensibiliza, general. A Espanha, por
exemplo, é a pátria do generalíssimo Franco, seu predecessor
e mestre (ao qual o senhor superou em atrocidades), cujo julgamento nunca
foi feito. De fato, acho que o mundo está maduro para que as nações
tenham, acima dos governos, um Tribunal independente e soberano para julgar
crimes contra a vida e atentados contra a ordem constitucional de qualquer
nação da terra. E que esse Tribunal, após julgar e
condenar alguém, tenha força, inclusive armada, para fazer
valer e respeitar suas decisões. Seria o único exército
num mundo desarmado. Porque, como disse Albert Einstein, “não adianta
acabar com as guerras. Se não acabar com os exércitos, elas
voltam.” Mas, sou obrigado a reconhecer que, consultando meu íntimo,
acho um mal menor que o senhor seja julgado por este ou aquele tribunal,
DESDE QUE O SEJA! E que, condenado, vá apodrecer numa prisão,
até que a morte venha para levá-lo a arder, eternamente,
no quinto dos infernos, juntamente com todos os ditadores!
Não é ódio
ao senhor, general, que não me merece esse gesto. É a exacerbação
do amor que dedico às suas vítimas.
Solange Rech