Lapa, 21 de Agosto de 1999
Caríssimo:
Escrevo-te porque te quero inteirar do que se passou na tua ausência.
Muitas coisas mudaram...
A Primavera em que eu tratava de delicados pistilos, olhava com
ternura os ninhos de passarinhos e sonhava com o amor,transformou-se em
pleno Verão, cheio de formigas e moscas,incomodativas, chatas, nojentas.
Os ninhos que tanta ternura me provocaram, deram origem a passarinhos
bem nutridos que todos os dias me cagam o alpendre que tenho de lavar.
A fruta cai das àrvores sem ter quem a apanhe e por mais que
me esforce em a colher (tão linda que era ainda em flor...) para
fazer doces, compotas e outras delícias, insiste em apodrecer. É
assim o campo, muda com as estações e somos nós também
assim, que mudamos com as ilusões e as desilusões.
Os fados que achas lindos, tal como dizia o poeta cujo nome não
lembro porque aqui não tenho enciclopédias "O fado não
é beleza , o fado é só emoção"
Entretanto, eu cresci.Não própriamente em tamanho mas,
em estatura.O meu estilo literário mudou. Agora sou realista, seja
lá isso o que for.A emoção, acabou.Ficou a humanidade
inteira, que se assume.Olho o espelho com verdade e ele responde-me com
verdade. Venci sózinha a doença porque, como sabes, há
médicos que abandonam os doentes quando eles mais precisam.
Porque estiveste longe muito tempo, achei que te devia dar conta da
mudança.
No que diz respeito ao nosso passatempo predilecto, a internet, descobri
novas coisas. Lugares onde as pessoas dizem o que querem sem falar de passarinhos
nem de flores.Só do que precisam, no exacto momento em que precisam.Compete-nos
a nós satisfazê-las ou não.Sem passarinhos, sem bocas
de leão, sem margaridas, sem caravanas do oriente com brocados e
sedas. Sem poesia... Só a natureza humana, com tudo o que tem de
bom e de mau.
Descobri que há pessoas que escrevem tão bem ou melhor
que tu e eu. Quase todas contraditórias, como nós. Descobri
que somos todos humanos, carenciados e mais ou menos infelizes. A minha
tolerância aumentou, a minha permissividade, não. Agora sou
eu que escolho o que quero e para onde vou.
Neste momento oiço os sinos da igreja a tocar.Única poesia
que me vem com o vento e com o vento se vai.
Como vês, amor, estou diferente. O tempo tem destas coisas...
Beijo da sempre tua
Mikas
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