Ribeirão Preto, 21 de Outubro de 1.999

Connie,

       É bem provável que você esteja pensando que escrevo-te com o único objetivo de perpetuar uma pungente e honesta declaração de amor. Fosse esta a minha intenção e eu estaria rebaixando o Amor enquanto conceito, enquanto algo  eterno. Não é ele como uma fome que nunca sabemos ao certo como saciar: a minha aflição não é um sentimento que não pode ser metamorfoseado em conceito, é justamente o oposto, a minha aflição é um conceito que não pode ser metamorfoseado em sentimento. Um conceito trêmulo, pulsante, incrédulo — bem sei o que é o Amor, todos nós sabemos, acreditar é outra história, uma definição que a todos os momentos esta a nosso lado, é a lembrança de um sorriso inscrito sobre uma lápide, é o rancor que não pode ser esquecido, aquilo que morre para tornar-se eterno, um tanto quanto imutável, eterno desde que não seja compartilhado. Portanto seria uma incoerência de minha parte dizer que tão logo pousei meus olhos sobre você e a amei, antes já amava e, ao te ver, soube que um dia iria calar-me.

       E talvez seja por isso que eu me lembre com tanta precisão da primeira vez que te vi, todavia prefiro não entrar em detalhes. E o que poderia dizer afinal? Foi em uma cálida manhã de Agosto, mas assim são todas as manhãs de Agosto: cálidas, não importando o quão terríveis sejam as nossas condições de existência, ou com quem intensidade o desejo nos esmaga. Um sol morno, transparente, traiçoeiro: talvez uma perfeita metáfora, talvez como beijar alguém estando consciente da incapacidade de nossos lábios, deveras pusilânimes.

       Lembro-me também que naqueles dias o clima andava bastante  seco, não chovia há pouco mais de um mês. De modo que o ar parado não fazia reverberar uma linda canção, disso recordo-me com espantoso frescor pois, ao chegar em casa, fui caprichoso a ponto de recorrer a meus discos e neles tentar ver pela segunda vez as nuances de teu rosto pálido como poesia escrita em papel... e os vi... durante uma dissonante fração de tempo. Logo depois tudo começou a ser envolvido pelo silêncio, foi quando pressenti que o que nutria por você começava a ruir, derradeiros suspiros a retalhar meu espírito como este fosse composto de carne que sangra. Em resposta deitei-me na cama, sob o preguiçoso e quente sol do meio-dia, feito quem não nasceu para este asfalto...

       O tempo passou e seria um abismal egoísmo dizer como isto se deu. Digo apenas que todos vivem sob alguma sombra, no entanto, há aqueles que vivem sob as sombras de algo vivo e há aqueles que vivem sob as sombras de algo morto, esquecidos são aqueles que imortalizam-se sob as sombras de algo que está por nascer. Sim, o tempo passou e fiz de tu uma criança perversa e submissa, assim te violentei para, no instante seguinte, tu contraíres qualquer doença venérea, tornando-te  indigna de ser tocada; por fim fiz de você um homem, e o amei e desejei como se eu fosse você. Hoje peço-te perdão: morro sem saber se a amei ou se simplesmente vivi, morro a contemplar tantos desejos, a considerar suficiente um beijo... sim, beijar-te seria suficiente, pois somente em sonhos te beijo; amar-te não, amar-te é, foi e será insuficiente, pois é no asfalto escarrado pelo sol que te amo...
 
                      Respeitosamente,
 
                                                   Daniel Francoy
 
 

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