"LETRAS CLÁSSICAS ", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna da segunda quinzena de novembro 2004
(próxima coluna: 04/12)

Os gregos antigos faziam poesia?

             Ninguém pergunta se os gregos antigos faziam poesia. É uma pena, porque a pergunta é mais interessante do que pode parecer. Como ninguém a faz, faço-a eu. Mas não sem antes esclarecer que o que chamo aqui de ‘gregos antigos' não são os gregos da Antiguidade, mas um feixe de gerações que vão desde os contemporâneos dos primeiros aedos helênicos até os espectadores das competições teatrais. Estão, portanto, fora desses ‘gregos antigos' as gerações pós-platônicas.
              Dados esses pontos de referência do nosso texto de hoje, vamos a um outro ponto da questão: a poesia.
             Havia, entre os gregos, um apreço religioso ao belo complexo. É verdade que herdamos esse apreço e que esse sentimento retorna na história da cultura com maior ou menor vigor, ao sabor de muitos fatores. Mas entre os gregos, posso afirmar, esse apreço religioso era tão robusto que seria capaz de fazer daquele que pode unir com absoluta perfeição a música à palavra uma espécie de sacerdote de uma verdade inspirada.
             O que chamo de inspiração aqui não é um sopro inexplicável através do qual um artista parte para uma obra ou a finaliza, mas refiro-me – isso sim – a crença de uma voz divina que dita a essa figura especial o que deve ser dito.
             Quem poderia contestar essas divindades que sopram ao ouvido desse homem especial?
             “Canta Musa!” – reivindica esse sacerdote, e a deusa ocupa o espaço de seu corpo e de sua mente, e, por esse meio, transmite ao povo a sua verdade, que não se distingue de sua memória.
             Mas não cabe a esse vate sacerdotal apenas a união completamente perfeita entre a palavra e música, cabe-lhe outros dons que foram se complexificando graças às necessidades de reiteração do valor – por vezes identitário – do dito.
             Assim, aos poucos penetraram nessa arte inspirada da memória e do improviso uma delicada forma de dizer, que constituiu o espetáculo da rapsódia, que formou o núcleo originário da expressão poética ocidental.
             Pode-se, contudo, dizer com tranqüilidade que se tratava de poesia? Penso que sim, mas desde que seja possível dizer que a poesia pode não ser literatura, ou que a literatura prescinde de letra, de autor e de uma intenção centrada no belo.
             Isso porque essa expressão sagrada não tinha o belo por fim, mas por meio.
             Aos poucos, no entanto, a escrita afirma-se, comprometendo uma a função inalienável desse patrimônio, a de transmitir e de formar a memória dessa mescla étnica que eram os gregos. Aos poucos também afirma-se um autor, que nasce tímido, por trás das Musas, mas que logo há de impor-se, até que, à época de Aristóteles já seja capaz de enfrentar a folha em branco.
             Enquanto acompanhamos o nascimento do autor, este vosso autor despede-se, prometendo aos que me acompanharam até aqui ser mais assíduo na coluna e menos cansativo na pena.

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