"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS
Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas -
Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/
Coluna da segunda quinzena de dezembro 2004
Ensinar grego (1)
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Sou professor de grego, e juro que dizer isso me é tão estranho quanto parece soar aos que o ouvem.
Professor de uma língua morta, uma língua sem falantes nativos vivos, e isso num lugar a milhares de quilômetros de onde essa língua foi falada há muito tempo.
Tudo isso é, lingüisticamente, tão excêntrico quanto ensinar lituano na Malásia. E, apesar disso, não é assim que as pessoas parecem perceber os que se dedicam ao estudo ou ao ensino do grego.
Claro que isso se deve sobretudo ao lugar que o grego ocupa no imaginário das pessoas. E o que parece mais surpreendente é que as pessoas não dão ao grego sempre a mesma conotação, sem deixar, contudo de reconhecer-lhe algum valor – que pode chegar a ser realmente grande.
O convívio assíduo com uma língua morta, para quem trabalha com ela, gera oscilações radicais na sua apreciação. Ora alguns a vêem lingüisticamente, ou seja, como uma mera língua; ora esses mesmos ou outros a vêem filologicamente, isso é, como uma língua que nos legou textos que precisam ser devolvidos às vistas públicas; ora ela é vista como um dos elos de uma das cadeias sucessórias de línguas, que nos levariam ao indo-europeu ou sei lá onde, e ora a vemos, nós todos que a estudamos, como um umbral por onde se pode exclusivamente adentrar uma cultura que reconhecemos como fundadora de uma identidade civilizatória.
Isso justificaria todo o interesse pelo grego, mas parece não ser suficiente para algumas pessoas, que buscam no grego, assim como buscariam no latim ou no alemão, uma vocação para o pensamento e uma predisposição filosófica.
O primeiro trabalho que publiquei na vida esbravejava contra essa crença, e hoje parece-me que eu mesmo confundia o pensamento com a filosofia. Isso porque, no caso do grego (e somente do grego), é tão absurdo crer que ele seja menos filosófico quanto mais propício ao pensar. Pensar é uma faculdade humana (embora eu acredite cada vez menos nisso), e a filosofia é um sistema muito limitado de pensamento que teve sua origem entre os gregos, e que, por essa razão, não se pode descartar a possibilidade de a língua grega ser-lhe mais apropriada.
É verdade que outras culturas incorporaram esse sistema, que, portanto deixou de ser exclusividade da expressão grega. Essa difusão do pensamento filosófico trouxe às línguas novas possibilidades estilísticas, e à filosofia novas perspectivas pelas quais se perdeu ainda mais.
Ainda que correta, a idéia aparentemente anti-lingüística de que o grego é uma língua vocacionada ao pensamento filosófico traz dois problemas basilares de onde derivam muitos outros. O primeiro problema refere-se à mitificação sem sentido da língua, que passa a ter poderes de evocar uma forma de pensamento que – sei lá porquê– resolveu-se considerar privilegiada. O outro problema é atribuir ao sistema filosófico um lugar que ele nunca teve entre os gregos antigos, para os quais o interesse – de resto muito grande – nos recursos lingüísticos só ganhou ares filosóficos entre um pequeno grupo, que, de tão contrário àquela sociedade, teve seu mestre epônimo condenado à morte.
Aos poucos, porém, o interesse pelo grego, outrora fundamentado na mítica da língua filosófica e na busca – por vezes cheias de falsos atalhos – das origens reveladoras, agora se renova em outra vertente, uma vertente estranhamente mais próxima do interesse que os próprios gregos dedicavam a sua língua. Esse interesse atual é o da retórica dos púlpitos pentecostais, que procuram nas línguas originais da Sagrada Escritura os argumentos que sustentam seus proselitismos pretensamente fundamentalistas. Seus equívocos metodológicos são praticamente os mesmos daqueles que, orientados por leituras (às vezes apressadas) de Heiddeger, por exemplo, soem perder-se nos atalhos promissores que nos unem a uma certa origem. E, malgrado a coincidência entre os equívocos metodológicos, são salvos nossos ‘filósofos' por não serem, ao menos, tão proselitistas quanto os fundamentalistas cristãos.
Assim, especialmente ensinar grego, continua a ser um eterno converter ao pensamento os que o rejeitam aprioristicamente, muitas vezes em nome de uma filosofia; outras, em nome de uma religião.
Na próxima coluna, convido a acompanhar-me na continuação desta reflexão o leitor que tiver suficiente benevolência para com estilo.
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