"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS
Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas -
Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/
Coluna da 1 ª quinzena abril
(próxima coluna: 19/4)
“Em estado de dicionário” 2
“Parei”. (Torquato Neto)
Muitos ainda se desgostam com o termo “línguas mortas”. Concordo que o termo pode entrar meio torto ouvido adentro, e pode mesmo soar triste quando pensamos nas línguas mortas prematuramente pela ignorância e pela soberba de um ocidente pretensioso, que teima em permitir que se dizimem os povos indígenas.
Mas eu gostaria de ver aqui, nesse cantinho nosso de tanta intimidade, a expressão “língua morta” despojar-se do manto da lamentação e revestir-se primeiramente de um colete técnico, que a faria significar “língua sem falantes nativos”. Depois, ainda peço, querida leitora, que você me ajude a completar os trajes do termo, colocando-lhe a anágua da antigüidade e, por fim, a gala de seu sentido de “idioma clássico”.
As línguas com falantes vivos, nossas línguas, não se permitem dicionarizar por completo, isso, como tentei expressar na quinzena passada, não é possível para uma língua que a cada dia absorve um sem-números de vocábulos e que regurgita diariamente outros muitos. Nenhum dicionário pode, é certo, acompanhá-las por completo. Sua vida, que é a vida de seus falantes, não o permite.
Mas o que dizer de uma língua que está parada no tempo. Sim, para os filólogos e beletristas, a morte da língua é uma parada definitiva. Uma parada no tempo e no espaço. Uma língua morta pode continuar em outra língua, como um pai no filho. Mas não em si mesma.
Daí nasce a outra língua, a língua dos filólogos, a língua dos historiadores do idioma, dos arqueólogos da gramática e dos paleontólogos do léxico. Dessa língua tão sui generis – meio ‘natural', meio invenção – brota a língua referencial do passado.
Ao contrário dos que se escandalizam com o nome ‘língua morta', comprazo-me com ele. Essa morte – ela mesma tão antiga – dessas línguas dá-lhe toda a peculiaridade que as faz fascinantes.
Passeando pelo sítio arqueológico desses idiomas do passado, descobrimos os referenciais identitários que nossa cultura escolheu. As narrativas, os desabafos, as leis e toda a sorte de registros que os ancestrais de nossa cultura ali deixaram revelam-se àqueles que passaram pelos percalços do desvelamento de uma linguagem que se aprende solitariamente e quase em silêncio, sem a ajuda de seus falantes.
Sem ajuda nem guia, é certo, mas não sem lanternas que iluminam por vezes com notável precisão esses sinuosos caminhos da compreensão do passado. Dentre essas lanternas há uma especialmente peculiar, que é a figura do dicionário.
Um dicionário – ou um léxico, aqui não entrarei na distinção entre dois tipos de obras – de grego ou de latim, para citar as duas mais famosas línguas da Antiguidade ocidental, tão melhor é quanto menos se compromete com a precisão do significado isolado e mais com a do significado contextualizado. Um bom dicionário dessas línguas, portanto, é totalmente voltado para as referências e usos, esforçando-se ao máximo para oferecer ao consulente o maior número de ocorrências significativas.
Essa é uma das particularidades dessas obras específicas, mas há outras. E outra delas é precisamente a possibilidade que só esses dicionários de línguas mortas têm de oferecer um verdadeiro thesaurus completo do léxico da língua em questão. Podemos dizer que somente esses dicionários podem ser completos, mesmo com os termos que só foram encontrados uma única vez, os ‘hapax legomena'.
Eles podem ser completos, é verdade; coisa que os dicionários de língua viva jamais poderiam ser; contudo, não o são.
« Voltar