"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna de nº 17 - 2 ª quinzena junho
(próxima coluna: 04/07)

O ideal da atemporalidade

O tempo é uma dimensão da identidade, assim como o espaço, e disso todos sabemos. São dimensões fundamentais, basilares. Sobre elas construirmo-nos como nação e como mundo, mas freqüentemente as negligenciamos para constituirmo-nos como indivíduos, como pensadores e como núcleos sociais.

O tempo e o espaço determinam a expectativa de um êthos; geram os recursos mínimos para pensar-se categorizações mais elementares e, por isso mesmo, por vezes, complexas.

Pertencermos a um tempo e a um espaço não nos define, é certo, mas coloca-nos diante de possibilidades das quais não podemos escapar senão pela negação, que ratifica a presença. Estar na "contra-mão" de seu tempo ou de seu espaço é também uma forma de estar neles.

Ainda que isso não pareça divergir do nosso senso comum e da nossa percepção de estar-no-mundo, há duas instâncias que, sujeitas a essas duas dimensões, recusam-se a considerá-las ou a consideram a custo ou secundariamente: a filosofia e a religião.

A religião tem mesmo a característica de anular internamente as distinções temporais, e, assim desenvolve a capacidade de cultuar no mesmo tempo e espaço a morte e o nascimento de um mesmo alvo de culto. É o que ocorre, por exemplo, nas Missas natalinas. Eis a razão de podermos falar de atemporalidade interna, pois ainda não é precisamente aí que se dá a negação de uma submissão ao tempo, mas apenas a suspensão da dimensão temporal no ato religioso. Essa é uma característica da própria religião, que habitualmente usa o termo 'tempo' para referir-se ao que se deve abdicar na vida contemplativa. E poderia ser suficiente tal atemporalidade, mas parece não contentar.

As religiões querem mais, querem a atemporalidade na história de suas instituições, o que chamo de atemporalidade externa. É o abuso do sempre, que se alega necessário para a estabilidade institucional, em um contexto em que a estabilidade da instituição é a sua garantia de saúde perene. Tal consciência tem raízes tão profundas, que preferem alguns alterar a atemporalidade interna — se não houver como não ceder às pressões do tempo —, do que realmente repensar a presença da instituição no tempo.

Caso muito mais curioso é o dos estudos filosóficos, que comento ressalvando as exceções da história da filosofia e da epistemologia.

Os estudos filosóficos tendem a privilegiar as idéias ditas puras, em que o tempo apenas lanhasse suas espessas couraças de argumentos, dando-lhes leves marcas quase desprezíveis, ou, se não, incômodas e mesmo danosas.

O pensamento deve, dentro dessa perspectiva, ter asas com as quais voe por sobre toda espacialidade e temporalidade.

A imagem pode seduzir, e seduz.

Imaginamos com gosto o pensamento autônomo livre da poluição do mundo do tempo, mas nem sempre refletimos realmente até que ponto isso é possível.

Pesam injustas e tremendas acusações sobre quem insiste em trazer à apreciação das idéias a noção de tempo. A pior e mais equivocada delas é a de determinismo. Contudo, se considerar o tempo fosse necessariamente determinismo, que historiador não seria determinista?

Considerar a importância do tempo não significa em nenhuma hipótese colocá-lo em posição etiológica, mas sim reconhecer-lhe a participação indispensável na produção de uma realidade e também de uma verdade.

O tempo e o espaço não podem abandonar seu caráter natural — presente na realidade biológica, por exemplo —, mas também não podem abdicar de sua contrapartida cultural, que os tornam verdade, e, portanto, humanos. A atemporalidade é o desumano.

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