Rabiscos
 

                    ¡São riscos! Invadi sua casa enquanto ela era no trabalho, enlouquecido pela curiosidade em descobrir o que ela tanto escreve em sua agenda-calendário, que ela nunca me deixou ver, que sempre esconde quando sou por perto, e que se tornou algo tão distante quando ela disse que não te amo mais seu lerdo, que chegou a hora de encontrarmos outro alguém, sermos livres, ¡ah! sermos livres, como poderia ela pensar que sou livre sem seu corpo, sempre sou acorrentado a um porquê flutuante, sou doente de uma insônia seca, perdido nas ervas do mundo, digo, trevas do mundo, e bem eu que sou e nunca estou, ermo e mudo abri sua gaveta sentindo-me culpado, é: culpado mesmo, um tanto apreensivo, sua maquiagem era por todo o lado, uma bagunça suas roupas, foi com a mão em seus cabelos que senti aquele mesmo perfume que agora exala desta gaveta enorme, reviro tudo para prejudicar à ordem exagerada dela, raiva tenho disso, como tenho da onça que nunca devora o macaco e da onda que nunca afoga o marisco, dou um giro pela cozinha na busca, me desperta uma fome na barriga de manhã cedo, empresto uma pêra da geladeira que pensando bem agora é roubo, tiro uma faca do gancho por engano, é macia a casca dessa pêra opaca, mas das outras pêras não sei, isso não é laranja Marcelo, não precisa descascar com faca, me toquei atrasado, quando ouço seus passos e não seu coração voltando lá na calçada, no portão rangendo, limpando os pés no capacho, correndo a mão por debaixo dos papéis acho a maldita agenda, guardada nesse quarto entre o volume de Rimbaud e um colírio, acho que deve ser um diário contendo verdades, vamos ver por quem ela me deixou abalroado quebrado partido, ela entrou então pela mesma cozinha e viu a faca encravada no chão frio, frio e acrílico, viu a casca da pêra no piso desesperada, vi as Verdes cortinas do quarto me protegendo dela, não me enxergavam assim tão fácil, revirei as páginas na pressa, ela assustou com a tevê cantando, passou ao quarto bagunçado e viu a cortina mexendo sozinha, seus cabelos tremiam de medo, meu Deus tinha aquela faca pontuda nas mãos, assustada, perdendo a voz, ¿quem está aí?, pois saia ou eu te mato, olhei pra agenda tão entorpecido que tonteei de tanta angústia, procurei o nome Carlos Gustavo, Marcos Roberto, não vi, só vi um monte de retas tortas sobre o dia vinte, arcos sem íris na primavera, rascunhos Negros no outono, borboletas sem antenas em janeiro, engoli em seco: esboço de um amante em palavras nada disso, ali traçado sobre aquele nosso ano passado juntos eram várias imagens borradas. Dentro dos quadrados espirais fazem abismos. Memórias (escuras). 末末末末末末末 Só riscos.

(Pra completar eu me desvendei e nos olhamos os dois, ela largou a faca boquiaberta, ¡francamente, Marcelo!, e eu nu saí manso como só minha vergonha me permitia. Mas fiquei mesmo é meio que petrificado ao descobrir a razão pela qual todo o romance faz sentido, e que deixa de fazer quando passamos um ano inteiro juntos num vazio. Raiva tenho disso. É: quando somos apenas rabiscos.)

Bruno Sadosky
 

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