A Passagem

     A jovem senhora, cuja altivez não dissipava o frescor e a simpatia, era muito bonita. Seus cabelos castanhos e curtos coroavam o rosto alvo, quase róseo; tinha os olhos miúdos e uns lábios desenhados com muita graça. Suave, fluida qual uma aparição, adentrou o bar, trajando um vestido longo de veludo marrom e botas de camurça preta, cadarçadas, daquelas que se vê nas fotos bem antigas. Tão garbosa figura evoluiu por entre os frequeses do botequim, aspergindo o ambiente com fantástica candura, uma bruma de bondade e compaixão que levantou o ânimo da gente dobrada pelo calor da tarde abafada. Deu boa tarde a todos e se dirigiu à Dona Lurdes, nossa idosa balconista, com uma pintura de sorriso e grande segurança nas palavras:
     — Boa tarde, gostaria de fechar a conta do Arduíno. A senhora pode providenciá-la para mim? — E derramou os olhinhos  de jaboticaba sobre a figura intrigada da velha senhora do bar, que sentiu uma onda de mansuetude acariciar o seu interior. Sem saber como podia estar acontecendo uma coisa daquelas, Dona Lurdes se assustava com a aparição:
     — D-desculpa, m-mais... quer dizer... s-só um minutinho, tá? — E foi saindo para a cozinha, perdida, atarantada, mas levemente feliz; aquela bonita moça mais parecia uma fada...
     A formosa recém-chegada deixou de queixos caídos e conversas estancadas os frquentadores do bar. Não por sua grave beleza, nem pela palidez de retrato antigo, ou pela elegante indumentária, mas por uma suavidade no andar, nos gestos, no modo de falar. Afiguráva-se a discreta passagem de um espírito que só poderia ser bom, a julgar pelo sossego irradiado.
     — Boa tarde, eu gostaria de saldar a conta do Arduíno.
     Lindo sonho, todos sentiam, aquela aparição, branca e bela, aguardando serenamente as providências de Dona Lurdes quanto ao pedido. Quem era? De onde vinha? Teria seus vinte e poucos anos, bem poucos, e, no entanto, aquela aura de distância no tempo e no espaço. Mistério... Ainda mais que ocorrera aos que assistiam à graciosa cena não terem visto como semelhante diva penetrara no recinto. Saltara de algum carro? Atravessara a rua? Materializára-se de mansuinho? A dama de séria beleza, com sua elegante pose, seus gestos macios e sua voz carinhosa passava um quê de deslocamento por outras dimensões, razão do espanto dos habituês do botequim.
     Minutos depois, as conversas já voltando a si, Dona Lurdes voltou com a despesa do Arduíno, mas já não encontrou a diáfana dama. Ela nã estava mais ali. Desaparecera de um modo tão discreto que ninguém notara. Parecia ter havido uma fascinação que cegou momentaneamente qualquer olhar atento e despistou os embotados raciocínios. Onde aquela divina dama? E todos se arrepiaram, sentindo um misto de medo e pudor. Procuravam reter em si a lembrança da encantadora imagem, mas se viam aparvalhados, como se tivessem saído de um transe, enquanto que um irresistível de novamente presenciar a aparição amarrava todos os pensamentos.
     A descrição da onírica criatura, mas tarde, fez o tal Arduíno tremer e engolir em seco: lembráva-lhe a sua avó — imagine?! — nascida no começo do século e morta, sexagenária, há cerca de trinta anos. Mais do que isso: espocára ante seus olhos certa fotografia de Dona Maria, a vó, aos vinte e dois anos de idade, reclinada sobre um canapé, o olhar distante, a beleza macia... E Arduíno contou para os colegas uma reminiscência de sua infância: A vó, que o criara durante os tenros anos, mostráva-lhe de vez em quando a roupa com que desejava ser enterrada, um lindíssimo vestido de veludo marrom-escuro, mais um par de botas pretas de camurça — o mesmo traje da velha fotografia. Dona Maria trazia guardada, com muito zelo, desde sua juventude, aquela vestimenta, que deveria ter um significado muito especial para a veneranda senhora.
     E Arduíno jamais conseguiu entender a história. Às vezes pensava ser gozação dos colegas de copo, com a cumplicidade de Dona Lurdes, que lhe relatara com firmeza a paz interior e o bem-estar causados pela insólita visita. Mas o aturdido rapaz chegava sempre à questão da indumentária, que lhe trazia a lembrança da fotografia, já perdida pelos arquivos de sua família. Sobretudo, quando nisso pensava, sonsamente estranhava a opção da bela dama pelo bar, como local para ir em busca do neto.

Galdino Moreira Neto

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