Toda palavra guarda uma cilada
Manuel Bandeira dizia que a tarefa de fazer letra pra se encaixar numa melodia era de amargar. Nas parcerias com Vila-Lobos e Jayme Ovalle (“Vai, azulão, azulão, companheiro, vai...”) limitava-se a achar palavras que fizessem corpo com o compasso e o sentimento da melodia. “Lidas sem a música, as palavras não valem nada”, lamentava-se. “Tanto que nunca as aproveitei para outro fim”. Pior, segundo ele, era ouvir do compositor: “Ah, você tem de mudar essa rima em mi porque a nota é agudíssima e fica muito difícil emiti-la nessa vogal”.
Torquato Neto, o poeta da Tropicália, que neste 10 de novembro completa 34 anos de morte, não. Ao que se saiba, a única letra que fez sobre esboço de melodia foi o delicioso sambinha da Brasa Samba, de Teresina, em parceria com Silizinho, em 71. Gilberto Gil me contou outro dia que nunca fez melodia para Torquato botar letra. Torquato era que chegava com a letra pronta pra receber a melodia. No processo, os dois faziam apenas pequenos retoques, corta aqui, apara ali, repete acolá. Pronto. “Embora não tocasse nenhum instrumento, Torquato tinha muita sensibilidade musical. Quando escrevia uma letra já vislumbrava o acento emocional que uma determinada melodia ia dar. Era um esteta”, disse Gil, parceiro em pérolas como “Louvação”, “A Rua”, “Geléia Geral”, e tantas.
Por isso me atrevo a dizer que, em Torquato, a palavra não se “anulava” e muito menos se abastardava em contato com a melodia. O poeta Ronaldo Werneck (“Dentro & Fora da Melodia”, nov. 2001), não considera poesia a palavra feita pra servir de letra de música, a menos que já se produza com objetivo de ser obra poética. Veja-se Vinícius. Quando escreveu “Eu sei que vou te amar/ Por toda a minha vida eu vou te amar...” estava fazendo letra de música da melhor qualidade. Letra de música que, em quase todas as gravações, sempre se faz acompanhar da recitação do belo “Soneto da Fidelidade (“Em tudo ao meu amor serei atento...”). Mas não se leia em voz alta “Eu sei que vou te amar”. Nem se tente por melodia nos versos do soneto. É quebração de cara na certa. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Tal como é difícil recitar em voz alta os versos de Bandeira para a canção de Ovalle: “Vai Azulão/ Azulão companheiro vai/ Vai ver minha ingrata/ Diz que sem ela/ O sertão não é mais sertão/ Ah, voa, Azulão/ Azulão, companheiro vai...” Assim como é igualmente difícil recitar, sem cair no mais atroz ridículo (que mestre Bandeira me perdoe por colocá-lo no mesmo balaio junto com Carlinhos Brown): “ Poeira lá rá rá /capoeira lá rá rá/ Terça-feira capoeira lá lá lá/ Tô no pé de onde der lá rá rá rá...” Meu atrevimento ao citar Bandeira avec Carlinhos Brown tem o único objetivo de exemplificar essa diferença entre dois “gêneros” de composição, que em Torquato se confundiam. Formado em Drummond, Cabral, o próprio Bandeira e todos os cantadores de feiras, sambistas e boleristas, Torquato exigia que sua palavra, quando cantada, mantivesse a mesma voltagem poética. Sim, fazia concessões, quase todas em função da métrica e da prosódia. “Vou fazer a louvação, louvação, louvação/ Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado” só saiu com essas repetições porque o ritmo assim o exigia, caso contrário teria saído mais simples, seca e direta: “Vou fazer a louvação do que deve ser louvado”. E pronto.
Em diversos outros exemplos (e os há em grande variedade, apesar da obra reduzida), Torquato esbanja poesia de alta criatividade e provocação. Aí vão alguns desses exemplos, citados de memória, montados em clip: “Ó, Deus, vos salve essa mesa farta/ feijão, verdura, ternura e paz”; “Eu tenho um beijo preso na garganta/ eu tenho um jeito de quem não se espanta”; “Desde que saí de casa/ trouxe a viagem da volta/ gravada na minha mão”; “Conheço bem minha história/ começa na lua cheia/ E termina antes do fim”; “Pego um jato, viajo arrebento/ com roteiro do sexto sentido/ voz do morro pilão de concreto/ tropicália bananas ao vento”. Augusto de Campos, na primeira edição de “Os Últimos Dias de Paupéria” diz que só um verdadeiro poeta para produzir versos com a qualidade desses: “Mamãe, mamãe, não chore/ Eu quero eu posso eu fiz eu quis/ Mamãe, seja feliz”. Sem falar em alguns trechos de “Louvação” que dá vontade de ferrar em bronze e colocar no meio da praça: “Louvo quem canta e não canta/ porque não sabe cantar/ mas que cantará na certa/ quando enfim se apresentar/ o dia certo e preciso/ de toda gente cantar”. Todos versos que resistem sem melodia (leia em voz alta, experimente, grite e comprove). E olha que foram feitos para receber (belas) canções.
Já o Torquato-apenas-poeta (não necessariamente letrista) é incomparável. E, na maioria dos casos, “imusicável”. Em raríssimos, como em “Go Back”, até que a melodia dos Titãs, sobreposta aos versos, funciona. Mas é exceção. Noutros casos, sobretudo no terrível “Cogito”, todas as tentativas de botar melodia foram inúteis. Só serviram para abastardar aquele que alguns estudiosos consideram um dos mais belos textos poéticos em língua portuguesa.
Ou seja, pra finalizar: Torquato sabia fazer versos/letras que funcionavam até mesmo sem melodia. É só observar como as letras de suas músicas são recitadas em saraus poéticos por onde se anda. E funcionam bem quando faladas. Ao mesmo tempo, o poeta compunha versos puros e tão perfeitos que, sobre eles, a música não cabe, sobra. Pois Torquato bem sabia, como escreveu no belo e trágico “Literato Cantabile”, que “toda palavra guarda uma cilada”. O poeta que abriu o gás aos 28 anos não caía em ciladas, criava as próprias. Sabia que todo gesto é o fim do seu início. E o resto é capoeira lá rá rá.
Paulo José Cunha