Foi
ontem, um galo; um galo-da-madrugada. Sem teatro nem figura: amanhecia,
quando ele, se esforçando por equilibrar-se na ponta da cerca, exibiu
o autêntico dom de sua raça. Imprescindível lembrar
a majestade com que, por alguns segundos, manteve-se no ar como os beija-flores,
sem perder o exuberante volume de um galo jamais. E pousou deste lado do
terreno.
Um galo que abandona o galinheiro há de ter sempre os olhos expectantes
e o amor à aventura que seus pares com certeza rejeitaram. Do outro
lado do vidro, ele estufava o peito e avançava cauteloso. Um felino
não seria mais atento. E será que não lhe vinha do
fastio dos galinheiros demasiado suburbanos ou do silêncio que três
horas da tarde fazem, entre nós, aquele temerário impulso
à evasão e à fuga? É que, deste lado, só
crescem gramas, e nunca um ovo de fundo de quintal veio estrelejar no óleo
da frigideira. Quem sabe o galo tenha pensado na liberdade.
A crista vermelho-escarlate — paradigma ou destino? —, pescoço erguido
e vigilante, o galo avançou com orgulho animal que vibra no sangue
do instinto de sua brava raça de ave — desde muito antes do galo
essencial, anterior ao galo paleontológico. E ele estava ali, do
lado de lá do vidro, mais antigo que os caldeus e os macedônios
— o precioso desenho de uma cor tensa, e que atravessando a História,
reitera, a gregos e troianos, a sua irreparável condição
de galo.
Foi aí que descerrei a janela para que o reflexo não perturbasse
nos vidros a exata visão com que ele, ainda hesitante e desconfiado,
avançou pela grama e estancou. Subitamente. Só os olhos ardiam.
Temi pelo improvável. Estufando o peito, batendo as asas, ergueu
contra o céu um bico rapina e punhal, e emitiu, com o que parecia
todas as forças, um triste e prosaico canto de galo. O mesmo cocoricar
que faz um galo todos os galos e abraça o mundo inteiro numa mesma
ânsia.
Pela aurora fria, discreto guardião da madrugada, considero a ave
insólita aqui surgida não se sabe porque inescrutáveis
desígnios. Pronto a me desanimar diante da esperança que
um galo, às seis horas da manhã, pode oferecer a um homem
insone, ele de novo bateu as asas; mas desta vez com tamanha arrogância
que, desafiando ossos e penas, o que representava exclusivamente um entusiasmo
transformou-se — como a um milagre — num vôo de tal forma prodigioso
que o galo desapareceu para além dos telhados de fronte — com o
luxo de um falcão assassino.
Wilson Bueno