CARTA PRA ELANE (*)

            É amiga Elane, você aí nos seus Valadares, me dizendo que anda entrando nos matos, vendo mulher virar macaco em circo de interior, segurando mineiro que quer espantar espíritos com tiros, e eu aqui, te invejando. Sim senhora, inveja boa mas, inveja. Não é pelo mato, pois também moro nele. Nem pelo circo , tão pouco. A inveja é mais profunda que isso. Muito mais. Vou tentar ser sucinta, pra não estender demais essa carta.

            Nasci carioca, como meus irmãos. Naquela época minha mãe paria no Rio, por conta dos recursos melhores. Pensa sempre os pais que estão fazendo o melhor para os filhos. Ledo engano. Gostaríamos mesmo era de ter nascido dentro da Casa Grande, pelas mãos das parteiras, arriscando nossas vidas, numa chama de lampião, numa noite de São João.

          Mais uns anos pra frente, meus irmãos e eu rezávamos todos os dias pra que o Cartório do Rio pegasse fogo e tivéssemos nossas certidões destruídas. Detestávamos , como até hoje, detestamos, carregar na identidade a natureza da Guanabara. Que me perdoem os cariocas. Não é por mal. É porque nunca conseguimos ser outra coisa que não f mineiros. Então, era meio vergonhoso a gente não se dizer assim. Era como estar negando a verdadeira identidade. Isso fez da gente mais mineiro que os próprios mineiros, porém andamos sempre achando que somos estrangeiros. Ficamos sem terra, na verdade. Sofremos de uma saudade misteriosa. Coisas de vidas passadas mesmo. E ficamos mais caboclos que os caboclos do mato. Carregamos pra dentro de nossas casas as Gerais, as Minas e todas as suas coisas. Nada pode ser de outro lugar que não seja daí. Trocamos os papéis. Em vez de estar dentro dela. Ela está dentro de nós.

           Por isso a minha inveja desse seu andar no mato das Gerais.

           E aquele seu poema, Elane. Aquele que você espetou meu coração, Minas e o Mar. Até chorei de paixão. Duvido que algum mineiro não chore ao lê-lo. Duvido. Mar pra quê ?  Minas não necessita de mar. Quem tem o São
Francisco, Rio Doce, Paracatu,  absorvendo mistérios no caminho...não precisa de mar. Quando eles saem, lá na frente, na boca do mar, despejam os encantos mineiros recolhidos e é por isso que o mar brilha esverdeado e azulado em outros lugares.

           Então, amiga Elane, não consegui, nessa vida, nascer por aí. Porém, daqui de onde moro, é só atravessar um rio pra dar em terras do sul de Minas. Da minha varanda vejo um pedaço grande da Serra da Mantiqueira. É como um castigo que tenho que cumprir.  Vê-la sempre à distância. Ela sempre deve ser lembrada, porém nunca tocada. Ela toma conta de mim. Olha pra mim
e eu pra ela, mais nada. Um amor platônico, simplesmente.

           Deus não vai me aprontar outra bravata, creio, vai me ajudar. Na minha hora final, vou me encher de coragem e  fazer essa travessia em cima de um cavalo. Vou chegar do outro lado, fazer um buraco bem grande, colocar meus dois pés dentro do barro  e ali me plantar, até esturricar.

           Porque é aí que quero morrer, Elane,  já que nessa terra não pude brotar.

Cláudia Villela de Andrade

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