"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS
Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas -
Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/
Coluna da primeira quinzena de fevereiro 2005
(próxima coluna: 19/02)
Ensinar grego (2)
No artigo "Ensinar grego (1)" apresentei ao amigo leitor algumas impressões minhas acerca da minha experiência como professor de grego. Este de hoje pretende completar aquele, esboçando algumas conclusões e tentando provocar algumas reflexões.
O ensino de línguas antigas, cuja volta às escolas é requerido por tantos e tantos saudosistas, já foi muito mais instrumento do que chamo, sem piedade, de tortura didática do que de uma abdicada preocupação com a pretensa solidez do conhecimento. A tortura didática consiste fundamentalmente em obrigar crianças a decorarem declinações e conjugações e depois a terem a ilusão de que traduzem grandes autores clássicos, mas sem relacionar nada disso com alguma coisa que realmente tenha relevância para ela. Ou, na melhor (melhor?!) das hipóteses, relacionam esse saber com o bem pensar ou com a melhor compreensão das estruturas do português. Esses argumentos já foram discutidos no artigo anterior, mas o que provoca a curiosidade de qualquer pessoa é o discurso quase unânime de uma geração que diz com um estranho saudosismo que já traduziu Cícero ou César na escola, mas agora não seria mais capaz de declinar 'rosa'.
Ora, querida leitora, caríssimo leitor, que estranho isso! Um saudosismo de um conhecimento que parece não ter feito o menor sentido, e que chegou a ser completamente esquecido! E mais estranho ainda será se o leitor esperançoso perguntar a uma dessas pessoas a razão da saudade. Já fiz isso algumas vezes, e as respostas não são diferentes dos argumentos que sustentavam a própria tortura didática sobre a qual falei. É o discurso da instituição reproduzido e usado como um aferidor de autoridade, o que me faz até mesmo supor que haja subreptício lamento de que não se sofra mais o que eles sofreram.
Nunca ouvi de nenhuma das pessoas com quem conversei uma expressão de satisfação por poder apreciar a arte de um autor latino. O que, ao meu ver, poderia justificar todo o esforço para aprender uma língua antiga.
Uma língua antiga é uma peça arqueológica; deve ser tratada com respeito, e interessa sobretudo a especialistas no pensamento e na história desse povo desaparecido. Esses especialistas, assim como aqueles que se dedicam à literatura, sentem necessidade autêntica de estar perto desse falar extinto, perto de um dos elementos mais relevantes da cultura que estudam.
E as pessoas que se interessam por esses assuntos para onde vão? Aonde vão buscá-los? Naturalmente que nas universidades. Essas, por sua vez, freqüentemente oferecem um modelo ainda baseado na estratégia da tortura didática. E dois dos instrumentos mais interessantes disso que estou chamando, com todos os riscos, de tortura didática são:
(1) A burocratização do ensino da língua, que passa de idioma a um apanhado (por vezes muitíssimo bem arrumado) de paradigmas verbais e nominais e de estruturas sintáticas devidamente indexadas pelo grau de dificuldade,
e (2) a perversa inversão absurda da ordem possível na prática da tradução, pois, não raro, os textos nessas línguas são traduzidos antes (e não depois!!!!) de serem lidos. E são traduzidos para serem lidos! Isso pode parecer um absurdo para muitos, mas é exatamente essa a prática disseminada. E essa prática é, parece-me, fruto de uma estratégia didática de aprender essas línguas através da tradução.
A estratégia não é mal pensada, ao meu ver: seu objetivo é substituir a fluência oral, mecanismo natural no ensino de LE ou L2, pelo prazer de traduzir. Isso me parece ótimo, mas parece-me também gerar dois outros problemas. O primeiro é o da dessacralização do ato de traduzir e do texto traduzido, e a segunda é o afastamento do 'leitor/tradutor' da possibilidade de uma apreciação estética do texto, com seus recursos próprios e com seu estilo peculiar. E esse afastamento é tão grande, que raramente se vê nas universidades treino de leitura de textos antigos ou mesmo alguma preocupação com questões teóricas e práticas acerca da pronúncia e da sonoridade do idioma. E mais, nota-se, em alguns cursos, até mesmo o desprezo pelo conhecimento do vocabulário!
A grande marca dos estudos de grego e de latim, assim como o das outras línguas ditas mortas, é a indissociabilidade entre a língua e a literatura. Isso porque essas línguas só existem nos textos escritos, e mais do que isso, só existem nos textos copiados copiosamente. Nem todos os textos são literários, é verdade, mas praticamente todos os textos escritos nessas línguas são estudados pela mesma disciplina, que com vários nomes, tais como filosofia antiga, literatura, história antiga etc., é, na verdade, uma única e mesma: Estudos Clássicos!
Gostaria de encerrar a coluna de hoje com um breve elogio à erudição, e dizer que, apesar de todas as dificuldades criadas em nome do conhecimento das origens e em nome de outras coisas ainda mais estranhas, ainda ronda almas privilegiadas o verdadeiro gozo de sentir-se inseridas em uma tradição que nos afere identidade, e, portanto, tem a missão de fazer-nos o que somos, de preservar nossas referências, nossas raízes requeridas (mas jamais naturais!), que nos colocam em contato com o que julgamos ter sido e com quem nos sentimos verdadeiramente felizes. Mais felizes do que sentimo-nos ao reconhecer na velha fotografia a antiga casa do avô, porque ao ler um texto grego ou latino sentimos tão vivamente isso que, cercados da anuência de todo um grande ocidente, somos obrigados a admitir — e admitir com mais veemência se o lemos na língua original: este é um clássico!
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