Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Blog pessoal:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nº 260 - 2ª quinzena de julho de 2014
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
A MORTE SÚBITA DE AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
No Soneto XLIX, escreveu ele:
Morrer, Senhor, de súbito, não quero!
Morrer como quem parte lentamente
Vendo o mundo perder-se pouco a pouco
E com o mundo as imagens da memória.
Morrer sabendo próxima e implacável
A hora de deixar o doce efêmero.
Morrer o olhar voltado para a altura
Para a Face de Deus, ardente e pura.
Morrer como quem vai se despedindo
A fixar as paisagens mais antigas
E os seres mais longínquos, já partidos.
Morrer levando a vida já vivida!
Morrer maduro, e não qual fruto verde
Por violência dos galhos arrancados.
Eu já escrevi sobre a sua morte, mas não me basta: Autran Dourado esperava à porta quando Schmidt apareceu.
– “Você e o Vinicius de Moraes desmoralizam qualquer clínica de repouso, disse ele ao poeta que lhe abria a porta do escritório. Veja você! Não tem nada. Está vendendo saúde!”
Foi que disse Ascendino Leite, em “As coisas feitas”, que eu reconto aqui, ou melhor, transformo em “conto”.
Schmidt costumava internar-se em clínicas de recuperação, alegava “estafa”. Era rico empresário. Tinha problemas cardíacos, como Guimarães Rosa, que temia assumir a Academia porque a emoção poderia matá-lo. Ninguém acreditava, diziam que era "charme". Mas Rosa morreu mesmo, 3 dias após.
Augusto Frederico Schmidt sempre acabava saindo da clínica por conta própria, contrariando prescrições médicas. Não aceitava recomendações, exercícios, dietas.
Naquele dia, fugira da clínica. E estava como sempre bem humorado e alegre, firme, almoçou com amigos, assumiu a direção de suas empresas.
Autran era dos seus amigos mais íntimos. Ao vê-lo protestou, que Autran era um ingrato, que não aparecia, não vinha vê-lo, não queria saber mais dele:
– “É isso! Não precisa de mim. Não é meu amigo. Se fosse, viria aqui mais vezes”, disse-lhe Schmidt (Ascendino Leite, idem).
– “Pois veja que eu estava justamente precisando falar com você”, disse Autran Dourado.
– “Comigo? Por quê? Está precisando de mim? O que você quer? Eu sempre andei a imaginar um meio de lhe ser útil, de lhe ser agradável!”
Autran Dourado sabia da tendência de Schmidt para o drama, para a catástrofe. Resolveu divertir-se um pouco. E disse:
– “Vim para pedir-lhe um conselho”...
– “Conselho? A mim? Sobre o quê?”
– Ora, Schmidt! A você só posso pedir que me fale das coisas sobre as quais você pode falar, pode dar conselhos. Por exemplo: sobre a vida, sobre a morte!”
Augusto Frederico Schmidt fez-se sério. Seu semblante mudou. Ele tinha escrito o soneto no fim do qual dizia: “E no seio da Morte a própria Vida”.
“Só quem Amor não venceu o amor conhece.
Só quem nas trevas vive e se alimenta
Da esperança de luz que é a luz suprema.
Só quem aspira a um bem e o não alcança,
Sabe o valor do objeto desejado
Cujo prestígio e preço não se altera
E resiste ao destino das terrestres
Coisas que, em se as tocando, se desfazem.
Força é sofrer prisão para ser livre,
E, por Ventura ter, da Desventura
Os passos ter seguido sem descanso.
Força é achar na renúncia a posse plena -
Nos caminhos da noite a luz da Aurora
E no seio da Morte a própria Vida.”
Continuando o relato de sua morte digo que, refazendo-se, sorrindo, em voz altissonante e forte, Schmidt rapidamente protestou, por não falar da morte:
– “Não! Isso não! Já falei, já escrevi muito, sobre isso, sobre ela, sobre a Morte! Agora, seu Autran, vamos pensar noutra coisa! vamos conversar sobre outros temas! outros assuntos. Vamos discorrer sobre a vida. Hoje, é a única coisa que interessa... A vida. A VIDA!”
Mas mudou. E depois, agora olhando fixo e preocupado para o seu amigo, para Autran Dourado, perguntou:
– “Por que você está pensando nisso? Por que falar da morte agora, você tão moço? Será que tem você alguma paixão”?
Naquele 8 de fevereiro de 1965 Autran Dourado tinha 39 anos e já tinha publicado “Uma vida em segredo”. Schmidt estava com 59.
– “Eu não, disse Autran. E você?”
Schmidt fez-se sério, enigmático. Respondeu:
– “Tenho. Sim, Autran, tenho uma paixão. Tenho uma paixão...”.
Mas nesse momento chegava o seu carro com chofer e o interrompeu.
Schmidt partiu. No meio do caminho passou mal e morreu.
Ele tinha escrito:
“Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
“A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
“Como as envolve agora neste instante.
“O vento fresco dobrará as árvores esguias
“E levantará as nuvens de poesia nas estradas...
“Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
“Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.
“Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
“E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer..."
Mas sobre a morte mesmo, a sua própria morte súbita, é o Soneto XLIX:
Morrer, Senhor, de súbito, não quero!
Morrer como quem parte lentamente
Vendo o mundo perder-se pouco a pouco
E com o mundo as imagens da memória.
Morrer sabendo próxima e implacável
A hora de deixar o doce efêmero.
Morrer o olhar voltado para a altura
Para a Face de Deus, ardente e pura.
Morrer como quem vai se despedindo
A fixar as paisagens mais antigas
E os seres mais longínquos, já partidos.
Morrer levando a vida já vivida!
Morrer maduro, e não qual fruto verde
Por violência dos galhos arrancados.
Ele morreu jovem. Tinha 59 anos, em 1965. Morava bem, em Copacabana, na rua Paula Freitas. Tinha muitos amigos e admiradores como eu, que naquele ano vivia num apartamento em frente ao dele, de quarto e sala, em cima do restaurante francês “Le mazot”. Eu sabia que ele morava lá, mas nunca o vi.
Morreu naquele ano; mas, como poeta, é eterno.
Ele era um homem bom, amigo dos amigos, dono de um galo branco.
Habitava num apartamento grande, quase esquina de Av. Atlântica.
Nasceu no Rio e morreu jovem no mesmo Rio de Janeiro, trabalhou na década de 1920 como balconista na Livraria Garnier, no centro do Rio, foi caixeiro viajante de fabricante de aguardente e álcool.
Em 1931 fundou a editora Schmidt, que publicou obras importantes como Caetés, de Graciliano Ramos, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
Ele era um poeta perfeito, magnífico, como se lê neste famoso soneto:
O desespero de perder-te um dia
Ou de vir a deixar-te neste mundo,
Habita o coração inquieto e triste
Enquanto a noite rola e o sono tarda.
Olho-te, e o teu mistério me penetra;
Sinto que estás vivendo o breve engano
Deste mundo, e que irás também, um dia,
Para onde foram essas de que vieste.
– Essas morenas e secretas musas,
Tuas avós, ciganas de olhos negros
Que te legaram tua graça triste.
Lembro que esfolharás na eterna noite
A rosa de teu corpo delicado,
E ouço a noite chorar como uma fonte.
(SCHMIDT, Augusto Frederico. Antologia Poética. Seleção de Waldir Ribeiro do Val. Introdução de Bernardo Gersen. Rio de Janeiro: Leitura, 1962.)
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