Solange Firmino - Coluna "Mito em Contexto"

Professora do Ensino Fundamental e de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio. Escritora, pesquisadora. Estudou Cultura Greco-romana na UERJ com Junito Brandão, um dos maiores especialistas do país em Mitologia.

           “...Da tocaia o filho alcançou com a mão
           esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice
           longa e dentada. E do pai o pênis
           ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo
           para trás. Mas nada inerte escapou da mão:
           quantos salpicos respingaram sanguíneos
           a todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano
           gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes
           rútilos nas armas, com longas lanças nas mãos,
           e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.
           O pênis, tão logo cortando-o com o aço
           atirou do continente no undoso mar,
           aí muito boiou na planície, ao redor branca
            espuma da imortal carne ejaculava-se, dela
           uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina
           atingiu, depois foi à circunfluída Chipre
           e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva
           crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite
           Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citereia
           apelidam homens e Deuses, porque da espuma
           criou-se e Citereia porque tocou Citera,
           Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
           e amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.”

[Teogonia de Hesíodo - estudo e tradução de Jaa Torrano; trecho do nascimento de Afrodite]

Na Ilíada de Homero, Afrodite era filha de Zeus e Dione. Outro mito de origem da deusa foi mais popular e narrado na Teogonia de Hesíodo. Seu nome significa 'saída da espuma' e, como notamos nos versos acima, o fato se deve ao seu nascimento na espuma das águas, no local onde caíram os genitais cortados de Urano, que, no momento de deitar-se sobre a Terra, foi mutilado por Crono. Após o nascimento, conforme o poema, a deusa fora levada pela espuma das ondas para Citera, depois Chipre, onde as Graças a embelezaram e ungiram.

A 'nascida da espuma' foi venerada desde tempos remotos como deusa do mar e da navegação, num sentido diferente do que acontecia com Poseidon e outros senhores do mar. Mas sua principal função mesmo foi suscitar nos deuses e homens os deleites do Amor. Mesmo casada com o deus-artesão Hefestos, Afrodite teve muitos amantes. Seu relacionamento com o deus da guerra Ares foi narrado por Homero na Odisseia. O Sol viu os dois juntos e contou a Hefestos. O artesão ferido produziu uma rede e jogou sobre os amantes na cama, depois chamou os deuses para testemunharem o adultério do casal.

Em consequência de suas numerosas ligações, Afrodite gerou muitos filhos, entre os mais famosos, Hermafrodito, Priapo, Eneias e Eros. Hermafrodito era filho de Afrodite com Hermes. Ele foi amado pela ninfa Salmácis e tentou evitá-la, mas, quando mergulhou em uma nascente, ela o abraçou até se fundirem num só. Dessa união se originou o conceito de hermafrodita, condição do indivíduo com órgãos reprodutores femininos e masculinos.

Afrodite amou Dioniso e com ele teve Priapo, cuja paternidade também foi atribuída a Hermes, Pã ou Zeus. Uma variante do mito diz que assim que Afrodite nasceu, ela foi amada por Zeus. O fato despertou o ciúme da esposa dele, Hera, que deu um soco no ventre de Afrodite, fazendo com que Priapo nascesse com o pênis descomunal, por isso era representado com um grande pênis ereto. Como era considerado deus da fertilidade, muitas histórias foram contadas sobre ele, a maioria obscenas.

Com o príncipe troiano Anquises, Afrodite teve Eneias. A deusa o protegeu na Guerra de Troia e o teria alertado a abandonar a cidade com o filho Ascânio e o velho pai. Ele estava destinado a alcançar a Itália para fundar um 'Troia' maior, que seria a precursora de Roma. As aventuras de Eneias foram contadas pelo poeta Virgílio na Eneida.

Na mitologia, Eros ora foi mencionado como filho de Afrodite, ora como amante. Sua paternidade também era um problema, às vezes diziam que Ares era seu pai. Mais tarde, adquiriu forma de uma criança alada e travessa que se divertia disparando flechas, fazendo novos apaixonados ou novos indiferentes, não só entre os homens, mas também entre os deuses.