"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS
Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas -
Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/
Coluna de nº 24 - 1ª quinzena de julho de 2007
Modelo de vida
Sentido de dieta na Grécia Antiga tinha como princípio atingir "o bom e o belo" e incluía corrida, exercícios, atos sexuais e até modificações na casa
Na televisão, cercadas do luxo próprio às passarelas da moda, mulheres-cabide apresentam as últimas criações da alta costura, mas são mais do que esquálidas: são modelos.
O espectador pode ficar tentado a seguir esse modelo de beleza a qualquer custo, com conseqüências deletérias à saúde; ou, mais comumente, vai engrossar o filão dos que buscam uma receita para emagrecer, uma dieta.
Para deixar o 1,6 bilhão de adultos em sobrepeso (estimativa da Organização Mundial de Saúde), pode ser conveniente estudar a Grécia Antiga -ou melhor, aprender que a palavra "dieta" equivale, originalmente, ao atual senso comum de que não há boa forma física sem exercícios e alimentação saudável.
Segundo Henrique Fortuna Cairus, professor de letras clássicas da Universidade Federal do RJ e pesquisador de textos médicos antigos, no berço da civilização ocidental a dieta "envolvia tudo, não só alimentação, por exemplo, mas também horários, freqüência do ato sexual e outras prescrições de cotidiano".
Autor de "Textos Hipocráticos" (ed. Fiocruz), em que traduz tratados de diversos autores antigos (reunidos sob a égide de Hipócrates, o "pai da medicina ocidental"), Cairus está preparando a publicação de "Sobre a Dieta" e "A Dieta dos Saudáveis", textos em que a Antigüidade clássica vai direto ao assunto ora em voga.
Mas, enquanto essa sabedoria anda esquecida, outro legado antigo só ganha importância: a arraigada ditadura da beleza -e sua associação ao corpo esbelto.
"Se olharmos os vasos da Antigüidade greco-romana, vamos nos perguntar: "Onde estão os gordos?"."
Em entrevista à Folha, Cairus discute a influência antiga na medicina e nos padrões de beleza do Ocidente.
FOLHA - Qual o significado original de dieta?
HENRIQUE FORTUNA CAIRUS - Para os gregos antigos, "díaita" era um modelo de vida a ser seguido — portanto, um modelo não-natural.
FOLHA - O que fazia parte dele?
CAIRUS - Envolvia tudo, não só alimentação, por exemplo, mas também horários, freqüência do ato sexual e outras prescrições de cotidiano que devem ser seguidas para obter um determinado fim. Era um instrumento para influir na doença da pessoa. O outro era o "phármakon" [fármaco, medicamento].
Também se fala nas dietas dos sãos, as dietas acertadas, com as quais as pessoas não adoecem.
FOLHA - Como a palavra "dieta" ficou com sentido tão restrito?
CAIRUS - Se se acompanharem os textos escritos, fica claro que a ênfase sempre foi na alimentação. A doença, para Hipócrates, baseava-se no excesso ou na falta; mesmo o exercício físico e a atividade sexual entram nessa lógica da falta e do excesso. Daí o peso da alimentação: por meio dela, se colocam no corpo substâncias que estão faltando.
Por outro lado, a retirada se dava por "kátharsis" (purgação) ou pelos exercícios. A dieta funciona dentro da lógica de pôr e tirar, que é a lógica da medicina ocidental.
FOLHA - A parte psicológica da doença não era contemplada?
CAIRUS - Era contemplada em termos: a parte psicológica só poderia dificultar, nunca ajudar -hoje temos claro que pode ajudar ou atrapalhar.
O equivalente à psicologia -eles chamavam de opinião do paciente- aparecia como fator negativo: o mal-estar do paciente turva sua opinião, pode prejudicar a avaliação do mal, o paciente perde as condições de informar devidamente o que tem.
Por isso, o texto "Sobre a Arte Médica" fala do perigo que é se guiar pelas palavras do paciente.
FOLHA - Hoje as pessoas lançam mão de dietas de emagrecimento e fármacos para regular o apetite. Onde se encaixaria a "alimentação funcional" [uso de ingredientes que, além das funções nutricionais básicas, têm efeitos metabólicos ou fisiológicos benéficos à saúde]?
CAIRUS - É um fármaco disfarçado de dieta. Com a diferença de que hoje temos presentes os males químicos que o fármaco faz; não havia essa conotação.
Esse alimento não implica uma alteração de vida, e ninguém o toma a vida toda. A dieta é mais eficaz no tempo.
FOLHA - Chegando à dieta perene, a dieta do saudável...
CAIRUS - Que é uma mudança permanente no estilo de vida.
Há um tratado antigo, que é a primeira vez em que se fala da relação do homem com o ambiente; é um tratado de dieta, também. É o "Ares, Águas e Lugares", do século 5ø a.C.
Ele ensina a um médico que viaja a observar o ambiente para ler a doença. Por exemplo, se a casa está voltada para um determinado sentido do vento, a doença pode ter relação com isso; modificar a casa era considerado uma dieta. Não se pode mudar o ambiente, logo se deve mudar o modo de viver: é o que os gregos chamavam de dieta.
FOLHA - A obesidade era tratada como doença na Antigüidade?
CAIRUS - Não doença, mas um mal. A idéia de excelência grega mesclava ética e estética -o bom grego era aquele belo e bom ao mesmo tempo.
As estátuas e vasos mostram o corpo magro como correto; por outro lado, havia imagens de atletas menos magros. A explicação geralmente os associa a atividades como luta.
Obesos são representados relacionados ao ridículo. A comédia representa muito o gordinho de falo grande pendurado -uma imagem grotesca. Aí está presente a "kalokagatia" [ideal de "belo e bom"]: o gordo está errado, portanto provoca riso.
FOLHA - E se falava em tendência em engordar?
CAIRUS - Não. O que havia era a relação entre a ingestão de gordura e o aumento de massa corporal. A palavra para fraqueza, em grego "asthenés", pode ter também o significado de magro.
Recomendavam ao fraco a comida espessa, gordurosa. Ocorre também a descrição de pessoas gordas como decorrência da falta de atividade física. E estava explícito que isso não era considerado algo positivo.
FOLHA - Há, portanto, desde a Antigüidade a consciência da relação entre atividade física e sobrepeso. Do ponto de vista da cultura da saúde, o que ficou dessa idéia de "belo e bom" unidos?
CAIRUS - Disso não ficou nada.
Entraram outros fatores, como a relação da aparência efêmera (aquela que podemos modificar) com uma posição de destaque, midiática -também efêmera. A aparência não implica mais uma conotação ética muito clara.
FOLHA - Concursos como o de Miss Universo são uma manifestação desse ideal antigo?
CAIRUS - O melhor texto para perceber isso é o "Banquete", de Platão, com o personagem Agatão, um belo vencedor de um concurso de poesia, representando a união entre sucesso intelectual e a apreciação física.
Platão faz uma brincadeira, ao pôr Sócrates diante da autoridade do corpo.
FOLHA - Então a beleza sempre acaba pesando um pouco mais?
CAIRUS - Hoje há uma tirania da beleza, sim, mas de alguma forma ela sempre esteve presente. Talvez não tanto quanto hoje.
Não creio que Agatão pudesse figurar no "Banquete" sendo apenas um corpinho bonito; ele tinha a atribuição intelectual também. Se olharmos os vasos da Antigüidade greco-romana, vamos nos perguntar: "Onde estão os gordos?".
Só aparecem gordos feios, de narizes enormes. Uma boa pessoa não poderia ser um gordo. Essa ditadura da magreza sempre esteve presente, embora não se possa afirmar que tenha sido tão imperiosa quanto hoje.
FOLHA - Mas não há contrapontos históricos, documentados, a essa "tirania", como o Renascimento e suas figuras rechonchudas?
CAIRUS - A moça renascentista é um mistério. Ao contrário da proposta de clássico, as representações renascentistas de mulheres não seguem o padrão clássico. As Vênus renascentistas são sempre envoltas na simbologia clássica, mas o corpo segue outro padrão.
Isso não quer dizer que não houvesse uma ditadura da beleza ali também.
FOLHA - A gordura não aparece como símbolo de fertilidade ou pujança?
CAIRUS - Hipócrates tinha um texto sobre a largura do quadril da mulher. E falava que a mulher, para parir bem, precisava ter alguma gordura. É coisa que qualquer médico hoje assinaria embaixo.
FOLHA - Podemos comparar a miss Universo às top models tendo como referência o ideal cultural de beleza?
CAIRUS - Padrões diferentes convivem -mas não padrões muito diferentes. Não podem conviver a top model renascentista e a esquelética.
Sempre houve variação, como no caso dos vasos gregos, que tinham atletas mais encorpados, rechonchudos.
A estátua de uma top model não funcionaria como estátua porque não seria reconhecida pela linguagem de estátua, que é um código renascentista.
FOLHA - A beleza da estátua e a do nosso corpo eram uma mesma idéia que agora está dividida?
CAIRUS - É uma questão extremamente polêmica. Eu defendo que eram coisas separadas. Como o rosto representado em um vaso encontrado em uma parte do Mediterrâneo é igual ao de outro vaso encontrado em outra parte do Mediterrâneo?
Além da representação do belo, há um código próprio daquele meio. Foram encontrados vasos em que aparecem bichos que não existem no lugar onde foi feita a pintura. Existem muitos historiadores que acham que a imagem pictográfica é mais fiel.
Tenho a impressão de que, hoje, ninguém iria gostar de uma estátua de uma top model.
Não sei se esse corpo faria sucesso em outro ambiente senão o das modelos; por outro lado, como disse, o corpo não pode ser muito discrepante do leque de possibilidades -senão, cairia no ridículo, como as representações de gordos na Antigüidade.
É como a estátua da princesa Isabel, em Copacabana: é uma princesa magra, ao contrário das representações que vemos de uma senhora gordinha.
Se fosse representada como era de fato, a representação não combinaria nem com os modelos de estátua nem de princesa [herdados da tradição].
FOLHA - A anorexia aparece como doença na Antigüidade?
CAIRUS - Não. Aparece como sintoma.
FOLHA - E a fome?
CAIRUS - A fome aparecia associada a guerras e doenças. Tucídides [século 4ø a.C.] brincava com a semelhança entre as palavras fome ("limós") e peste ("loimós"). Um oráculo previra a guerra dórica e, com ela, a fome.
Só que não veio a fome, mas, sim, a peste. Então diziam: "Viu como o oráculo havia previsto a peste?". E Tucídides concluiu que as pessoas constroem a memória de acordo com o que precisam usar.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1006200705.htm